Artes Visuais e Performativas, Editorias

«More more more future»

A escuridão assola a sala. Há apenas um foco de luz no palco onde os artistas, em roda, fazem soar cânticos entre sons guturais, risos abafados e uma genuinidade tal, que transpõe a plateia para uma noite em que reina a incerteza, não em Lisboa, mas no Congo. Foi assim que Faustin Linyekula, pela iniciativa Artista na Cidade, conquistou a plateia presente no Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, abalando quaisquer estereótipos e barreiras culturais, tornando o mundo ainda mais pequeno. Linyekula, coreógrafo, bailarino e encenador congolês, atuou ao longo deste ano em várias ocasiões em Lisboa, partilhando as relíquias da sua cultura, do seu país e da sua história num processo de desenvolvimento pessoal e artístico.

Nos passados dias 10 e 11 de novembro, foi “More more more future…” a peça que sensibilizou e aqueceu os corações dos lisboetas. Para surpresa do público ao entrar na sala às 21h já lá estavam os artistas, como que anfitriões mudos e estáticos acompanhados por sons de uma floresta. A curiosidade que sobrepôs a expetativa, fomentada por avisos como “(…) momentos de alta intensidade sonora”, dissipou-se entre o poder e a força da voz de Pépe Le Coq, pelo arranjo instrumental e por uma coreografia que surgia subtilmente debaixo de camadas de tecido e papel em rufos. Havia uma estranha continuidade entre o som da guitarra elétrica e os passos que se tornavam cada vez mais tribais. A floresta tornava-se numa sanzala vivida no corpo dos bailarinos. Sentia-se euforia, agitação; os três bailarinos sacudiam-se, demarcavam os seus movimentos e a sua postura. Ao mesmo tempo eram proferidos e projetados textos em francês e, apesar de uma barreira linguística, via-se o desenvolver de uma narrativa.

Fonte: Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: Fundação Calouste Gulbenkian

A dinâmica existente entre os fatos e os bailarinos termina; de costas despojadas tudo se intensifica. O ndombolo*, como um veículo, transmite o sofrimento, as perdas, a coragem do povo congolês num serpentear que tem tanto de sensual, de gracioso, de amargo.
“Como os jovens se apropriaram da música para tudo demolir numa sociedade sentenciada como sem futuro(…) é difícil para nós recusar um futuro que nunca tivemos, é difícil ainda mais destruir o nosso monte de ruínas; limitemo-nos a sonhar com os pés bem assentes na terra, a construir um pouco mais de futuro sobre estas ruínas… ”. (Faustin Linyekula)

Foto de Agathe Poupeney
Foto de Agathe Poupeney

A peça com seis anos era recriada naquele palco, o sentimento era cru, a audiência vivia momentos de angústia, incerteza e esperança. Um corpo iluminado por um feixe de luz na intensa escuridão disse mais que muitos livros de história. Faustin deixou ali o que se viveu e vive num país com um legado de guerra e instabilidade. A entrega dos artistas ao público e à peça foi total. O sentimento foi recíproco quando finda a performance quase toda a sala, composta por cidadãos portugueses, se levantou, demonstrando gratidão e empatia.

*Ndombolo – dança tipicamente congolesa que se tem propagado para outros países africanos, conhecida pelos seus movimentos pélvicos e com grande tensão sexual.