Mulheres, às Armas!: a força anónima que sustentou a Revolução de Abril
Em vésperas dos 51 anos do 25 de Abril, a TVI estreia uma minissérie sobre o papel das mulheres durante a Guerra do Ultramar. Mulheres, às Armas! é um projeto idealizado por Cristina Ferreira, que pretende retratar uma parte da História portuguesa em grande parte esquecida. Durante os últimos anos do Estado Novo, longe dos campos de batalha, ficaram as mulheres, que, na sombra de um regime opressivo, foram uma força silenciosa que sustentou o quotidiano de um país em guerra. Foram estas que, nas fábricas, nas casas e nas ruas, educaram os filhos, fizeram frente às despesas e ampararam a ausência dos homens mobilizados.
A inspiração partiu de uma memória familiar de Cristina Ferreira, que desde cedo ouviu relatos da mãe e da avó sobre o pai que havia sido enviado para o Ultramar e sobre os anos de ausência, expectativa e receio que marcaram profundamente a vida destas mulheres. As histórias de pequenos gestos de resistência, silêncios carregados de medo e esperança e uma vida em suspenso fizeram-na perceber que havia uma parte da História de Portugal por contar.
Passada entre 1973 e 1974, precisamente nos meses que antecedem a Revolução dos Cravos, Mulheres, às Armas! relata a vida de quatro mulheres, operárias de uma fábrica têxtil. Adília (interpretada por Sílvia Chiola), Deolinda (Madalena Almeida), Lurdes (Sara Carinhas) e Isabel (Victoria Guerra) são mulheres de diferentes origens, mas unidas por uma realidade comum: a vivência num país em tensão, marcado pela ausência e pela rigidez de um regime que reprime os seus direitos e autonomia. Adília é uma jovem operária de origens humildes que decide ficar em Portugal mesmo quando o namorado a desafia a fugir para Paris, numa altura de intensas tensões. Deolinda, a mais sonhadora das quatro, acredita que a educação é o caminho a seguir, mas rapidamente é confrontada com os limites opostos pelo género, classe social e realidade de um país em guerra e ditadura.
Lurdes, por sua vez, envolvida em movimentos clandestinos de oposição ao regime, arrisca-se ao tentar mobilizar as colegas para exigirem melhores condições de trabalho. A sua coragem, muitas vezes silenciosa, representa os princípios de revolta que cresciam no seio da sociedade portuguesa às portas da revolução. Por fim, Isabel, uma mulher de alta sociedade, vê-se obrigada a regressar ao mundo do trabalho quando o marido morre na guerra. O seu choque com a vida operária representa a forte dependência das mulheres em relação aos maridos, numa altura em que muitas não tinham sequer conta bancária e a sua autonomia e independência eram praticamente inexistentes.
Ao longo dos três episódios, as vidas destas mulheres vão-se entrelaçando, revelando laços de solidariedade, amizade e resistência. A fábrica onde decorre a ação não é apenas o cenário; serve também como um símbolo de um Portugal feito de trabalho duro e lutas diárias, que sustentaram a esperança de um futuro livre. Apesar da sua curta duração, esta série transmite um ritmo intenso com a sua narrativa, acompanhando o passo acelerado da História. Cada episódio não só nos remete para a resolução dos conflitos e libertação individual das personagens como também espelha o galopar para o 25 de Abril e o despertar de uma nova consciência social.
O verdadeiro pano de fundo desta história é o país no final do regime do Estado Novo. Um Portugal em declínio, cinzento, empobrecido e profundamente vigiado, onde a esperança clandestina é a última a morrer. A série recria esta atmosfera e tenta não moralizar as personagens, nem pô-las em caixas de “boas” ou “más”. Em contextos de censura e guerra, todas as pequenas decisões e contradições humanas são tomadas dentro de estreitas margens, ganhando uma dimensão real e complexa.
Mulheres, às Armas! revela como, mesmo em tempos de opressão e medo, nasciam sementes de transformação nos gestos mais simples: a coragem de estudar, a ousadia de trabalhar fora de casa, a decisão de falar quando ninguém o fazia. Longe dos quartéis, era nas fábricas, nas famílias e nas amizades que se construía a possibilidade de um país diferente. Num país prestes a implodir, a série mostra que foram as rotinas invisíveis e a persistência do dia-a-dia que mantiveram a sociedade portuguesa unida.
Recupera assim, as pequenas histórias esquecidas de mulheres anónimas que nunca foram manchete de jornal, mas sem as quais a mudança política jamais teria sido possível. Mais do que uma evocação do passado, a série mostra como a mudança começou muito antes de Abril, sendo tecida no quotidiano por quem parecia ter menos poder, mas carregava a verdadeira força da revolução.
Ao terminar, Mulheres, às Armas! deixa uma impressão duradoura pela forma como ilumina uma realidade de resistência feminina em tempos sombrios. Funciona como uma lembrança de que em todas as transformações sociais e políticas existem histórias invisíveis que merecem ser contadas. Tal como Celeste Caeiro, a mulher que ofereceu os primeiros cravos à Revolução, os gestos pequenos, mas decisivos, das mulheres portuguesas ajudaram a escrever a história que iria mudar Portugal.
Fonte da capa: A Televisão
Artigo corrigido por Matilde Gil
AUTORIA
Embora esteja (ligeiramente) mais perto dos 30 do que dos 3, a Beatriz nunca passou da idade dos porquês. A sua curiosidade inata é o que a faz interessar-se por mil e um temas, podendo ficar horas a falar sobre qualquer assunto (se não a mandarem calar). Não troca nada deste mundo por um bom café acompanhado de uma conversa que a faça pensar. Entrou para a ESCS Magazine com o desejo de reavivar a paixão pela escrita, algo que cultiva desde a infância, e para continuar a satisfazer o seu amor por conversas intermináveis, agora traduzidas em texto.