Editorias, Opinião

Não destruam os clássicos!

*Era uma vez uma linda menina conhecida na sua aldeia como Capuchinho Vermelho por causa do seu belo capucho. Certo dia, a avozinha da Capuchinho, que morava do outro lado do bosque, adoeceu. Então, a mãe da Capuchinho pediu-lhe que levasse à avozinha um cesto com um bolo e um pote de mel.
– Mas tem cuidado! Não te desvies do teu caminho nem fales com estranhos.
Capuchinho assentiu. Pegou no cesto e partiu. Pelo caminho encontrou umas lindas flores e decidiu apanhar algumas para levar à avozinha. Estava Capuchinho distraída a colher flores quando apareceu o Lobo Mau, que a cumprimentou simpaticamente e lhe perguntou onde ia.
– Vou a casa da minha avozinha, que está doente, levar este cesto.
O Lobo Mau sorriu de contentamento, pensando para si que naquele dia teria uma bela refeição, e disse que lhe indicaria um bom atalho. Para agradecer ao Lobo Mau, Capuchinho retirou do bolso um pacote de Oreos e ofereceu-lhe uma. O Lobo Mau, querendo parecer simpático, comeu a Oreo e, subitamente, perdeu a vontade de fazer mal a Capuchinho e decidiu realmente ajudá-la.*

Indignado, o Lobo Mau fechou abruptamente o livro. Sabia que o conto original não se passava assim e sentia que era um ultraje para si e para o seu trabalho que o alterassem. E esta alteração tinha sido sem dúvida a gota de água de um historial de modificações que ele considerava totalmente descabidas. Primeiro tinha deixado de comer a avozinha e a Capuchinho para passar a engoli-las, perdendo-se totalmente a duplicidade de sentido do verbo original. Pouco depois o verbo matar fora também substituído para atenuar a sua punição: o caçador passou simplesmente a enxotá-lo como a um cão vadio ao invés de o matar com um tiro de caçadeira. E agora isto…

Aquela história, como tantas outras histórias tradicionais, estava cada vez mais distante das suas origens, e a sua mensagem estava irrevogavelmente perdida para as gerações humanas vindouras. Olhou para o livro fechado, que pousara sobre o colo, e com uma imensa revolta e uma grande amargura, sem o voltar a abrir, adivinhou-lhe o final. Soube que perdera para sempre o seu papel de vilão naquele conto. Soube que não tardaria muito até perder também a sua maldade na narrativa que partilhava com os três porquinhos. E, por fim, sentiu que o seu fim estava próximo.

Quando tivesse finalmente transposto a grossa linha que separa a classe dos vilões da dos heróis das histórias, a sua personagem perderia o sentido e cedo se desvaneceria. Nesse meio tempo, pertenceria à classe de ninguém e esvaziar-se-ia de toda a sua personalidade com tolices como ajudar a Capuchinho ou partilhar a casa de tijolo com os porquinhos. Então o seu próprio nome acabaria por ser alterado para o seu antónimo por uma questão de lógica. E depois nunca mais ninguém o recordaria como o grande vilão que fora. Na verdade, não restaria sequer uma memória humana que o retivesse, fosse como anti-herói ou como Lobo Bom.

Sentiu-se furioso o suficiente para destruir aquele livro com as suas garras afiadas, mas o seu desânimo tomava um peso maior, impedindo-o de fazer o que a sua fúria reclamava. O desgosto de ver todos os clássicos transformados num enjoativo cenário cor-de-rosa de belas e benevolentes personagens apertava-lhe o frio coração e causava-lhe náuseas. O que seria das tramas quando nelas não persistisse já um único obstáculo a ultrapassar? Que heroísmo seria o dos protagonistas e o dos heróis secundários quando a sua fortuna lhes chegasse sem, para isso, nada terem feito?

Concluiu que também eles perderiam o seu valor. Apercebeu-se com pesar de que também esses – os bons – estariam irremediavelmente condenados ao fracasso e votados ao desaparecimento no futuro. As antigas histórias morreriam. E talvez não houvesse novas histórias para serem contadas; e se as houvesse, mais tarde ou mais cedo, também elas seriam ameaçadas por insensatas modificações e esfumar-se-iam. As alterações cessariam, então, finalmente o seu trabalho.

Lembrou-se do caso de Drácula. Durante anos a fio, o Conde fora ameaçado com sucessores sedutores e reluzentes, que em nada respeitavam o seu caráter, mas não se preocupara. Ao Conde vampiro não ofendiam as novas criações e havia ainda quem o recordasse da maneira devida. Muitas vezes a alusão ao seu nome nas novas histórias protagonizadas por essa nova linhagem vampírica, quando respeitavelmente feita, chegava mesmo a agradar-lhe pelo facto de lhe angariar novos leitores. O que lhe apoquentou o espírito do seu corpo gelado e o colocou nas imediações do penhasco do desaparecimento foi, sem dúvida, a apropriação indevida da sua personagem e a manipulação do seu caráter. E assim, desde então, também ele aguardava num futuro próximo o seu fatídico destino de ficar votado ao esquecimento. Porque sem morder o delicado pescoço da rapariga, Drácula deixaria de ser ele próprio, e a sua história de terror ver-se-ia esvaziada do medo que a caraterizava, perdendo toda a glória que a classificava como um grande clássico.

Mas talvez não tivesse de ser assim. Talvez ainda houvesse uma réstia de esperança a conservar. O Lobo Mau fitou de novo o livro fechado no seu colo. Com calma, abriu-o e folheou-o até encontrar o momento em que a sua história se começaria a apagar. E então, com um golpe rápido, cortou as folhas malditas e destruiu-as.

O seu único pensamento, durante aquele ato de libertação, registou-o com a ponta afiada de uma garra na contracapa do livro: “Não destruam os clássicos!”.

A Joana Costa escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico