Natal em tempo de pandemia: A suprema tragédia do século
Complexos. Não me ocorre outra palavra para descrever aquilo que foram os últimos meses. O culminar de um ano com consequências brutais e nefastas para todos os cidadãos do mundo merecia certamente uma palavra melhor para o caracterizar. Julgo que nenhum de nós conseguiria retratá-lo sem que se fizesse uma introspeção profunda sobre os impactos causados. No entanto, no momento em que um vírus arrasou a humanidade, deixámos de poder ser individualistas e de nos centrarmos apenas no nosso próprio sofrimento.
A suprema tragédia do século. Com audácia e astúcia, entrou de rompante e sem modos para ficar. A única catástrofe que nos permite representá-la de forma ambígua, pois nunca presenciámos algo assim. Pela primeira vez, repensámos intensamente nas nossas vidas, adicionando à equação algo que seria inimaginável anteriormente. Pessoais, inexplicáveis e intransmissíveis, os sentimentos que experienciamos deixaram de o ser, tornando-se transversais a quem ao nosso lado se encontra ou alguém do outro lado do planeta sofre nas mãos de um vírus mortífero. A individualidade perde-se em momentos trágicos – perdemo-la para a Covid-19.
As ruas reluzem. Estamos no mês de dezembro. As árvores nuas, agora cintilantes, revestem-se de protagonismo, o frio chega para contextualizar a época. O ambiente natalício, a música e a azáfama habitual daqueles que percorrem o mais pequeno beco ou dos que decoram a mais ampla sala. As pessoas parecem felizes, em paz. Engana-se quem assim pensa. As crianças escrevem cartas a um senhor que certamente lhes trará tudo aquilo por que tanto anseiam – “Portei-me bem, Pai Natal. Este ano quero que o bichinho vá embora. Preciso de reunir a família nesta altura do ano tão especial”. Talvez esta não seja a ânsia de uma criança. Por vezes, não consigo distanciar-me daquilo que são os meus próprios desejos relativamente aos dos outros. Culpo, exatamente, o excesso de individualismo. Porém, se consciente da realidade em que estamos inseridos, o mais pequeno ser quereria a sua família por perto nesta quadra natalícia. Como explicar-lhes que isso não pode acontecer?
O auge do sentimento relativo a esta época pode ser tão prematuro, como o tempo de preparação para o esperado dia. Dois mil e vinte, para muitos considerado um palavrão de alto calibre, desfez em pedaços qualquer planeamento ou pensamento natalício. A mais pequena fração de tempo, nesse microssegundo onde o pensamento é redirecionado para um outro determinado assunto, pode ser decisivo. Não existe margem para errar nem a possibilidade de nos distrairmos quando o perigo de contágio é tão elevado. Ainda que tentemos assemelhar este Natal a qualquer um vivido anteriormente, isso não será exequível. Colocamos de lado o simbolismo religioso associado a este dia, esquecemo-nos de ansiar pelos presentes, pensamos na vivência deste Natal de diferente forma pela ausência de propagação de boa energia tão comum nesta altura do ano. Substituímos todas essas tradições por um distanciamento não emocional, mas físico, tendo em conta que a privação de um abraço ou de um beijo pode ser o suficiente para proteger aqueles de quem mais gostamos.
Contágio. Palavra tantas vezes e por muitos repetida ao longo de diversos e infindáveis meses. Dificilmente voltaremos a associá-la ao cronograma natalício. Com 65,457 mil casos ativos de Covid-19 em Portugal, a maioria das famílias decidiu não se reunir, receando constituir um perigo para os seus entes queridos, significando que muitos irão celebrar o Natal sem a presença do seu núcleo familiar mais próximo, provavelmente afastado desde que foi decretado o primeiro Estado de Emergência. Se refletirmos sobre a forma como estamos a enfrentar esta fase adversa, percebemos que as tarefas que associamos a este momento do ano – montar a árvore de Natal, comprar presentes para distribuir por quem mais amamos e cozinhar com os nossos parentes – parecem distantes, como se nunca pudessem ter acontecido ou se existisse a possibilidade de não voltarem a acontecer. A impossibilidade de acarinhar, a necessidade de nos distanciarmos e a obrigatoriedade de utilizamos uma máscara que cobre expressões impercetíveis através do olhar despe a época natalícia, retirando-lhe o seu significado e deixando sós os nossos parentes, que mais do que nunca necessitam de ternura.
Idealmente, a época natalícia seria sinónimo de alegria, de positividade e de generosidade. Porém, o espírito solidário parece ter-nos escorregado por entre os dedos quando mais precisamos dele, embora devesse ser uma constante. Opiniões divergem acerca do verdadeiro significado do Natal, do quão agarrado ao capital o ser humano se encontra. Ainda que não discorde, preciso de acrescentar que propagar ódio não pode, nem deveria ser aquilo que nos move nesta época, especialmente quando todos sofremos perdas imensuráveis durante o ano. Mais do que nunca, o tempo que utilizamos em prol do outro, ainda que não possamos estar fisicamente presentes, deve ser priorizado. Somos afortunados por ter sobre nós um teto, um lar repleto de carinho, com pessoas que nos presenteiam, acima de tudo, com a sua companhia e eterna dedicação. Discursos de gratidão não poderão trazer de volta o pedacinho de Natal que nos foi retirado ou que ficou perdido para dois mil e vinte, mas, definitivamente, revestem-se de uma película amenizadora de sofrimento que permite colmatar o facto de este ano ser especialmente atípico. Fechar os olhos não pode ser a solução que encontramos para contornar as adversidades. Superar a pandemia, ainda que com inúmeras privações, deve ser o objetivo a cumprir. Ter menos uma pessoa à mesa este ano pode permitir-nos tê-la com saúde e perto durante uma vida inteira.
Artigo revisto por Maria Madeira.