O antes que se perca
Os seres humanos tendem a apaixonar-se por memórias. Gostamos de pensar que aquilo de que nos lembramos, eventualmente, vai voltar. Mas nem sempre acontece. E isso não é mau. Melhor, não é sempre mau. Porque há situações e situações.
Apesar do facto de não gostar de admitir tal coisa com frequência, nunca fui menina de fechar portas. Gosto de deixar o meu estore entreaberto para ver levemente as luzes à distância. Escusado será dizer que as luzes não iluminam nada quando não está aberto, mas deixa que haja qualquer coisa em que acreditar. E não me deixo ficar pelos estores. Deixo portas encostadas, porque sei que são mais fáceis de voltar a abrir e continuo ligada à divisão de alguma forma esquisita. O problema é que não tenho esta tendência apenas para os objetos materiais e quando o assunto são limites espaciais.
Tenho uma memória seletiva. Gostava de me lembrar tão bem de matérias teóricas – em que tento enfiar cada palavra dos textos na cabeça através de apontamentos e de resumos que condensam tudo o que estava escrito – como me lembro de situações caricatas. Acho que esse é o meu aspeto mais vincado do Jornalismo: tenho a capacidade de reter momentos da minha vida e de recontá-los de uma forma muito mais cómica ou educativa do que o ocorrido. E com isso não quer dizer que tenha de acrescentar partes à história – apenas sei escolher os pontos em que dou uma entoação diferente.
Claro que este aspeto não é seletivo: não posso dispor da minha vertente de memória apenas quando quero narrar algo. Ela está sempre cá a tempo inteiro. O que consequentemente significa que os momentos também têm uma significação específica na minha cabeça.
Lembro-me do momento em que me apercebi de que tinha um sentimento maior do que amizade ou amor platónico por alguém. Sei que aquele sentimento não surgiu no dia em que me apercebi disso, mas o momento em que tomei consciência é mais vincado do que qualquer outro em que o sentimento já lá estivesse. Aliás, não faço a mínima ideia de qual foi o momento em que aquele sentimento surgiu ou se acentuou, porque só o consigo encontrar em ocasiões após a apreensão. O que não é mau: é bom saber que o clique não foi sentido diretamente, porque significa que nada nas minhas ações se alterou até eu estar no papel de consultora de memórias.
Mas há um lado mau. O meu amor pela pessoa estava centrado em momentos em que a pessoa esteve lá para mim. Para dizer que eu conseguia. Para dar o incentivo que me faltava. Para ser o primeiro contacto que me vinha à cabeça. Para o ter como uma prioridade acima. Para me fazer sentir que era especial. Para dar aquele silêncio confortável ou a boa conversa em que se repensam situações em conjunto. Para acreditar que era a pessoa que mais o conhecia. Talvez seja a pessoa que mais o conhecia naquele determinado momento da história. O problema é que aquele momento passa e a memória faz com que acreditemos que todas estas pequenas coisas vão voltar a surgir porque outrora já existiram.
Se fosse assim, o mundo era aborrecido. Estávamos sempre iguais e presos às mesmas pessoas, fiéis a algo que continuaríamos a ser para sempre. Aliás, arrisco-me a dizer que, na cabeça de alguém que se deixou deturpar por emoções, acreditamos que o mundo funciona assim. Que a pessoa que faz um esforço para aparecer no momento certo e nos dar o seu melhor o vai voltar a fazer. Enquanto seres humanos, dependemos de expetativas.
O problema está nesta expetativa que nos leva a ficar agarrados ao que era. E, se foi, pode voltar a ser. Então entrei em relações mais vezes do que pude contar com a mesma pessoa, na esperança de que, lá no fundo, estava alguém que eu amava. Escusado será dizer que não estava e eu demorei uns bons tempos longe da relação e da pessoa para me aperceber. Passei quase um quarto do meu tempo nesta bola a que chamamos Planeta Terra a acreditar que aquela pessoa existia só para mim. O que era verdade, só já não estava no sujeito em que eu o projetava – estava na minha cabeça.
Acredito que isto não se aplica só a relações amorosas. Vemos isso em amizades que, por vezes, se alongam no tempo à espera de que a cumplicidade volte. Vemos isso em sonhos que foram perdidos, mesmo que no fundo não se tenha perdido a esperança do seu retorno. E vemos isso no mundo em que vivemos: acreditamos que a nossa vida vai voltar ao «normal». Que, de alguma forma, a Covid-19 desaparece e, quase como por magia, voltamos ao que fazíamos antes. Será que queremos que isso aconteça? Ou estamos simplesmente na expetativa de que nos saiba tão bem quanto as memórias que temos dessa vida que já nos pertenceu?
Não estou a afirmar que gosto de viver no meio de uma pandemia. Isso era uma mentira das grandes. Quero que isto se dissipe aos poucos. Mas isso não significa que queira voltar à vida de antes, porque não quero. Não quero estar em situações em que estou rodeada de pessoas e metade delas não me dizem nada, porque percebi, enquanto respeitava os limites de ajuntamentos, quem eram as pessoas que queria perto. Não quero ter de comprar mil presentes e estar em quinhentos aniversários, porque grande parte dessas pessoas são uma lembrança com pernas. Não sei se quero estar num comboio tão cheio quanto costumava estar – na verdade, nunca me senti muito bem com isso. Não sei até que ponto quero voltar a sentir-me numa lata de sardinhas a sair de um espetáculo. E não quero, de certeza, voltar a fazer fretes: percebi que o meu tempo presencial só deve ser dado a quem me faz sentir bem.
Que se lixem as memórias. Elas nunca têm o mesmo sabor quando se repetem.
Artigo revisto por Rita Asseiceiro