O ‘espetáculo’ em Guy Debord: transição ou aprofundamento?
Em 1967, nas vésperas da última grande revolução estudantil, o intelectual francês Guy Debord publicou “La Société du Spectacle”, “A Sociedade do Espetáculo” em português. Mais de cinquenta anos se passaram e Debord mantém intacto o seu mito, pelo legado, currículo, fim trágico e relevância no pensamento contemporâneo. Este ano, a excelente editora Antígona fez-nos chegar, pelas quatro mãos da tradução de Francisco Alves e Afonso Monteiro, a primeira edição da obra em português de Portugal. Parece inacreditável como uma das obras mais pertinentes da filosofia pós-moderna chega tão tardiamente ao nosso país. Mas deixemos isso.
O que significa, então, ‘espetáculo’ e o que significa estarmos imersos na intitulada ‘sociedade do espetáculo’? Para o entendermos, temos de recuar ao século XIX, ao incontornável Karl Marx. Não sem antes deixar uma anotação: Debord, genericamente, tem de ser engavetado algures na ideologia de esquerda – é pacífico aceitá-lo. No entanto, opto por mencionar isso já no início e deixar por aqui os rótulos: Debord tinha as suas convicções e o anti-capitalismo estava seguramente entre elas. Diz a prudência, contudo, que o reduzir a esse enquadramento é correr um grande perigo: o filósofo, antes de ser de esquerda, era um voraz crítico e analista social, pronto a dinamitar com a mesma pujança o estalinismo, o fascismo e as democracias liberais. Dizia eu que Debord leu Marx, claro está, e procurou, nesta obra, atualizar um conceito específico de “Das Kapital”: o ‘fetichismo da mercadoria’. Segundo Marx, a mercadoria tem um valor adicional vinculado não ao objeto em si, mas ao resultado da sua posse. Exatamente cem anos depois da primeira publicação do grande texto teórico do comunismo, Debord nota que o aspeto material da mercadoria, no capitalismo avançado do século XX, já não é o fator mais relevante, mas antes a imagem da mercadoria. Assim, se Marx detetou a transição da “era do ser” para a “era do ter”, o pós-Segunda Guerra marca o início da “era do parecer”, era essa que parece perdurar, com maior ou menor incidência.
Começamos então a entender melhor o que Debord quer dizer com ‘espetáculo’ e, por extensão, por que razão a Antígona achou pertinente editar esta obra nos nossos dias, tão propícios para pensar Debord. As teses 4, 12 e 13 do livro acabam por ser as que melhor sintetizam o conceito de espetáculo:
4. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.”
12. «O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Limita-se a dizer que “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que de facto ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.»
13. “O carácter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples facto de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.”
Segundo julgo entender, além de espetáculo, a palavra-chave aqui é a imagem. O espetáculo é, então, o uso da imagem, visando-se a si mesma como fim último. A imagem com vontade própria e representação, se Schopenhauer se quiser juntar à conversa. O espetáculo, segundo Debord, está em todo o lado. Ainda assim, ele tem a sua manifestação mais visível nos meios de comunicação de massas de que, hoje, as redes sociais são filhas bastardas. E se a imagem não visa nenhum fim que não a manutenção das relações de poder, daí facilmente se salta para outra palavra-chave: alienação. O espetáculo vence no momento em que coloca as nossas vidas ou, pelo menos, uma grande parte das nossas vidas em suspenso, alimentando a iminência do desejo, ora de posse, ora de prazer, ora de beleza, ora de emoções fortes, exercendo uma força neutralizadora quase impossível de deter, pois, com a massificação dos telemóveis inteligentes, o espetáculo estendeu mais um tentáculo. O segredo está em garantir que esses desejos se materializam por intermédio de imagem, nunca autenticamente. Deste modo, de acordo com Debord, às massas está destinado o acesso apenas a uma segunda vida, de marca branca, intermediada, onde nos sentimos encurralados e inúteis sem nunca entender porquê. Assustador, certo?
Levantar-se-á da plateia o leitor, arguto e decidido, e dirá: “Certo, mas a importância da aparência sempre acompanhou todas as civilizações da História. Em que medida isto constitui uma novidade?” Efetivamente, na Idade Média, a título de exemplo, o poder da nobreza sobre os servos estava vinculado à aparência de superioridade, mediante o uso de vestuário sofisticado, arquiteturas grandiosas, festas sumptuosas, etc. O que muda na sociedade do espetáculo é o carácter quotidiano da produção de espetáculos, a sua incalculável quantidade e o “seu vínculo com a produção e o consumo de mercadorias feitas em larga escala”.1 Em resumo, segundo Debord, a aparência monopolizou as relações sociais, o que torna o francês um dos precursores, inaudito, é certo, das teorias da pós-realidade. A partir do momento em que “aparentar ser ou ter” importa mais do que “ser ou ter”, o pilar da realidade autêntica perde importância. E, como se sabe, daqui até aos conspiracionistas e negacionistas é um saltinho.
Não é possível ler este livro sem reconhecer os ecos dos ideais da Escola de Frankfurt, de Walter Benjamin, Theodor Adorno e Max Horkheimer, publicados uns anos antes. Seguramente que Debord os leu, e daí recalcou o que pensa da cultura integrada no espetáculo. As conclusões não são muito diferentes. Enquanto fenómeno fatalmente omnipresente, o espetáculo também se apropriou da cultura, com efeitos que se estendem até aos nossos dias. Se antes a cultura era o núcleo de onde florescia a revolução, desde o ocaso do dadaísmo e do surrealismo, ela ou, pelo menos, uma grande parte dela remeteu-se ao estatuto de mercadoria que navega ao sabor das modas, das alegadas vontades do público, de aleatoriedades contextuais, estripada do seu carácter orgânico e transformador. Na arte passou a entrar, sem apelo nem agravo, a “especulação cínica”2, com o único objetivo de se alimentar a si própria e às bocas que aí vão nutrir-se.
Há pouco, de forma a situar concretamente o leitor, disse-se que o espetáculo se manifesta de uma forma mais direta através da multiplicação e transmissão de imagens através dos media. Porém, o espetáculo é muito mais do que isso: “rituais políticos, religiosos, hábitos de consumo, tudo aquilo que falta à vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias, tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida.”3 Debord, no tom cáustico e brutal que o caracteriza, não tem dúvidas em afirmar que o espetáculo é uma construção orquestrada cujo objetivo é manter-nos infelizes, anónimos, solitários, eternamente em busca de um propósito, perdidos dentro de uma massa homogénea de semelhantes que sofrem do mesmo juntos, mas separados.
Não é, por isso, de estranhar que o desejo de fama, embora com construções diferentes ao longo das décadas, permaneça no imaginário de muitas crianças e jovens. O que pode ser encarado como uma futilidade, diz Debord, pode ser antes uma compreensão clara do que está em causa no elevador social. As celebridades, os grandes atores, hoje os grandes influencers são profissionais no ofício da vida aparente, são aqueles cujas vidas todos desejam, aqueles que chegaram ao sonho que os restantes mortais vivem toda a vida sonhando. “Funcionam como miragens: as personagens com as quais somos levados a identificar-nos numa compensação para a função cada vez mais acessória, ultra-especializada, da vida que vivemos. A produção procura que tudo seja substituível.”4
O habitante da sociedade do espetáculo não é mais do que, como o próprio nome sugere, um espetador, um ser que não vive – só contempla outras vidas. É pressionado permanentemente a encontrar o seu papel na sociedade e a desempenhá-lo, mas ao mesmo tempo é impedido de perseguir esse propósito, porque, afinal de contas, não há propósito nenhum. Aliás, a haver, não somos nós que o definimos, mas o espetáculo. Ele e unicamente ele determina o que são necessidades e desejos legítimos que são, normalmente, a experiência ora de conforto, ora de “emoções tão fortes quanto rasas”.5
Se a teoria espetaculista de Debord se mantém atual nos dias de hoje, é uma questão que continua por responder. Talvez uma observação não metodológica nos levaria a dizer que sim. Das telas grandes das televisões saltamos para as micro-telas individuais dos nossos laptops, tablets ou smartphones, agudizando a fragmentação social, a pós-verdade e a banalização do voyeurismo por intermédio de imagens. Nesta linha de pensamento, tudo o que era antes vivido autenticamente é-nos agora absorvido e apresentado como uma mera representação, o que abre de forma escancarada a porta à, entre outras coisas, desinformação. Nesse sentido, a sociedade do início do século XXI seria uma continuação da sociedade do século passado, onde o fim e ao mesmo tempo início era satisfazer a procura de entretenimento, emoções, hipnotismo. O mundo, tal como o vemos, afinal, não seria mais do que um simulacro que aparentava ser mais real do que a própria realidade. As consequências são inúmeras. Talvez a mais grave seja a perda de noção da realidade e, pior, a perda da preocupação com a perda de noção da realidade. Enquanto este fenómeno permanece na esfera da individualidade, embora nocivo, pode não ter consequências de maior. O problema é quando transita para a esfera pública e política. Não é demais recordar a forma como decorreu o referendo que ditou o Brexit, a intervenção dos serviços secretos russos na eleição de Donald Trump, a disseminação de fake news que ditou a eleição de Bolsonaro ou o caso Cambridge Analytica, só para citar alguns exemplos. Concorde-se mais ou menos com Debord, é importante perceber que há consequências muito negativas que a sociedade do espetáculo traz. Quer isto dizer que, mesmo que não se defenda uma abolição cabal e total deste sistema social, é fundamental identificar e combater os seus inúmeros excessos, principalmente quando chegam à esfera da decisão.
Esta não é uma teoria unânime, tal como Debord, de resto, nunca o foi. Existem igualmente teóricos e pensadores que defendem que esta sociedade do deslumbramento com o consumo e com as grandes estrelas de Hollywood deu lugar, no século XXI, a uma sociedade da informação. A queda das torres gémeas e o atentado na Estação de Atocha marcaram indelevelmente o início do século XXI como o conhecemos: foram as primeiras grandes demonstrações dos efeitos negativos da globalização e da livre circulação de pessoas. «A globalização, a abertura de fronteiras de forma desorganizada, olvida um elemento-chave, indispensável: o homem. A globalização, cujos efeitos já são questionados até e principalmente pelos países desenvolvidos, de primeiro mundo, também tem em seu contexto um paradoxo evidente e descritível a olho nu, apresentado pelo próprio Debord: há o isolamento das “multidões solitárias”.»6 Em simultâneo, e com mais ligação do que à partida possa parecer, o século XXI é também o século da Internet, do smartphone e das redes sociais, talvez a maior revolução na comunicação desde as redes ferroviárias do século XIX. Se no século XX o império das empresas de televisão e cinema era inquestionável, hoje essa esfera de poder transitou claramente para empresas digitais como Amazon, Facebook, Netflix, Google ou Huawei. Uma das grandes consequências foi o fim, ou princípio do fim, da mediação mediática: se antes as televisões colocavam no ar o que queriam, hoje o público pode escolher o que quer ver e a que horas. De igual modo, foi transferida para o público a responsabilidade de consumo de informação, sem a curadoria de especialistas, como editores ou jornalistas: basta consultar o feed de notícias do Facebook para facilmente se estar informado. Sendo que facilmente não significa bem informado, como sabemos. Se há quem considere que isto resulta de uma maior consciência do público de si mesmo, assim como um crescimento da sua literacia, a verdade é que a desintermediação não é necessariamente uma boa notícia, dado que expõe os menos letrados a posições extremistas – como, por exemplo, o discurso anti-imigração. O outro lado da moeda é vislumbrar este fenómeno como uma mera transferência da intermediação, à luz da teoria de Debord. Isto porque, efetivamente, a mediação continua a ser feita, só que em ecrãs cada vez mais pequenos e individualizados.
Seja como for, a fragmentação social em nichos é hoje uma realidade, o que se pode refletir positivamente num aumento da diversidade de comportamentos e hábitos de consumo. A irrupção da cultura hip-hop no imaginário das massas é um fenómeno provavelmente inédito na história, no sentido em que, pela primeira vez, parecem ser abandonados preconceitos de ordem moral e étnica na aceitação dessa realidade, gostando-se mais ou menos da cultura envolvente (eu, pessoalmente, não aprecio do ponto de vista estético, mas reconheço o valor simbólico – a visibilidade aos outrora desprotegidos). Contudo, como há sempre um reverso da medalha, a sociedade do espetáculo, ou da informação, indiferente aqui, e os seus respetivos nichos informativos tem gerado uma preocupante polarização e clima de hostilidade. A crise pandémica consagrou a revolução digital e, paralelamente, nunca se viu, na história recente, tantas manifestações e protestos de vária ordem: racial, sexual, de género, ideológica, trabalhista, etc. É possível que, de uma forma geral, as sociedades ocidentais tenham ganhado uma consciência mais nítida daquilo que Albert Camus teorizou, em 1942, em “O Mito de Sísifo”, como o absurdo de um mundo desconexo e sufocante, onde parecemos encurralados na ausência de propósito. A confirmar-se este cenário, teríamos uma situação em que Debord, para gáudio do próprio Debord, veria a sua teoria infirmada: a sociedade do espetáculo, ao invés da se auto-renovar infinitamente, seria ela própria a causa da sua autodestruição, o que constituiria o melhor détournement de sempre. Não esquecendo, porém, que, se há bicho resiliente e que renasce em qualquer lugar, esse bicho é o capitalismo.
- https://revistacult.uol.com.br/home/midia-e-poder-na-sociedade-do-espetaculo/
2. https://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/a-sociedade-do-espetaculo/5240
3. https://www.revistaprosaversoearte.com/guy-debord-a-sociedade-do-espetaculo/
4. https://ionline.sapo.pt/artigo/391902/-a-sociedade-do-espectaculo-o-legado-do-ltimo-revolucionario?seccao=Mundo_i
5. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/564298-para-entender-a-pos-verdade
6. https://jus.com.br/artigos/87053/guy-debord-a-mantenca-da-sociedade-do-espetaculo#_ftn1~
Fonte da Imagem de Capa: MUBI, do documentário “La Société du Spectacle” (1973), realizado também por Guy Debord
Artigo revisto por Ana Sofia Cunha
AUTORIA
Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.
Tenho a primeira edição da tradução em português de A Sociedade do Espectáculo, de 1972. Segundo Debord foi uma das melhores traduções do seu livro. A editora Antígona reeditou essa tradução. Está, aliás, explicado na ficha editorial do livro.
2015: https://pedromarquesdg.wordpress.com/2015/03/19/fernando-de-bentley-guy-debord-e-a-edicao-portuguesa-de-a-sociedade-do-espectaculo/
(…) a primeira edição portuguesa de A Sociedade do Espectáculo de Guy Debord (a quarta mundial, depois das edições italiana, norte-americana e dinamarquesa) desenrola-se, ao longo de 1971, no ritmo lento de uma correspondência entre Lisboa e Paris (…)
Caro João Mendes
Li hoje, com interesse, o seu artigo “O ‘espetáculo’ em Guy Debord: transição ou aprofundamento?” de 2021. Mas confesso que me surpreendeu a seguinte consideração:
“Este ano, a excelente editora Antígona fez-nos chegar, pelas quatro mãos da tradução de Francisco Alves e Afonso Monteiro, a primeira edição da obra em português de Portugal. Parece inacreditável como uma das obras mais pertinentes da filosofia pós-moderna chega tão tardiamente ao nosso país.”
O livro “A Sociedade do Espectáculo” foi publicado em 1972 como o nº 2 da Colecção Ensaio/Documentos, da editora Fernando Ribeiro de Melo / Afrodite. Não sei se me escapou outro sentido.
Melhores cumprimentos
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Caro Ricardo,
Muito obrigado pelo seu contacto. É de facto um lapso clamoroso. É possível que me estivesse a referir à primeira edição da Antígona, ou então na pesquisa que fiz não me surgiu esse livro que refere. Irei contactar a redação para corrigir o erro assim que possível.
Cumprimentos,
João Mendes