Literatura

O VIRGEM NEGRA EXPLICADO ÀS CRIANCINHAS NATURAIS E ESTRANGEIRAS POR J. P. M.

Quando me propus a ler O Virgem Negra de Mário Cesariny, nunca pensei vir a entrincheirar-me numa encrenca destas. Afinal, já havia estudado Cesariny na minha licenciatura (com a tutoria da queridíssima professora Rosa Martelo), assim como Fernando Pessoa, o autor que serve de mote a este livro, tanto no liceu como na mesma licenciatura. Em termos de preparação contextual, julgava-me nas plenas faculdades para entender a obra cuja primeira edição foi lançada em 1989. Interprete-se como um reconhecimento de humildade ou como uma autoflagelação ignorante, a verdade é que, em bom português, não entendi merda nenhuma. Afinal, não conheço assim tanto nem a obra cesarinyana, nem a obra pessoana. Afinal, o que é lecionado na faculdade, pelo menos na licenciatura, consiste numa pequena parte do espólio destes dois gigantes. Lição aprendida. Haverei de lhes voltar a tomar o gosto futuramente. Feitas as pesquisas complementares, que sempre faço, mas neste caso se vieram a revelar fulcrais, vamos lá a isto.

Mário Cesariny Vasconcelos, um dos maiores vultos do surrealismo português a par de Alexandre O’Neill e Herberto Helder, foi, como é sabido, um dos maiores leitores de Fernando Pessoa. O Virgem Negra não é, de resto, a primeira tentativa de diálogo intertextual com o poeta modernista. Já em 1953 Cesariny publicara o folheto Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, embora, em termos estruturais, sendo um folheto, se trate de uma publicação diferente.

UM TÍTULO LONGO E ENIGMÁTICO

Título: “O Virgem Negra: Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais e estrangeiras por Mário Cesariny de Vasconcelos, Who Knows Enough About It.” Subtítulo: “Seguido de Louvor e Desratização de Álvaro de Campos pelo Mesmo no mesmo Lugar Com Duas Cartas de Raul Leal (Henoch) ao heterónimo; e a Gravura da Universidade. Escrito e Compilado de Junho de 1987 a Setembro de 1988.” Perante esta abordagem, quem não conhece minimamente a vida e obra de Cesariny é levado a achar que se seguirá um texto pedagógico com considerações mais ou menos sérias de alguém que se autointitula entendido na matéria. Ao mesmo tempo, referindo-se aos leitores como “criancinhas”, não só acentua o pedestal de intelectualidade, como sabota a estrutura e o protocolo da crítica literária tradicional, o que levanta logo uma questão.

 Para Cesariny, faz falta uma leitura dessacralizada de Pessoa e ninguém melhor do que ele para o fazer, neste caso com recurso a reescritas de poemas pessoanos e ainda quatro epístolas, de que falarei adiante. O livro recupera uma questão aparentemente básica: será que sabemos realmente quem é Fernando Pessoa? Será que este deve ser lido à luz da autoridade suprema do cânone, ou seja, daquilo que consta do programa do ensino secundário? Será que Pessoa, como sugere o título, era virgem, mulher, homossexual? Será que isso é relevante ou é fugir aos aspetos essenciais da sua obra?

O que significa então “O Virgem Negra”? Porquê a ausência de concordância de género entre nome e adjetivo? Na senda da figura pessoana, o título provém de um mito, o mito do virgem negra. Bem, na verdade, dois mitos. O primeiro de que, alegadamente, Pessoa teria morrido virgem. O segundo está relacionado com a transladação do corpo de Fernando Pessoa, em 1985, do Cemitério dos Prazeres para o Mosteiro dos Jerónimos. No processo, o caixão terá sido aberto revelando o corpo intacto – apenas negro.  Numa aceção mais elaborada, Madalena Lobo Antunes escreveu: “Negra, também, porque a presença de Pessoa no cânone da literatura portuguesa ensombra muitas outras figuras, como Teixeira de Pascoaes, figura cara a Cesariny, por ocupar diversos espaços com as personagens por si geradas, nomeadamente as que compõem o universo heteronímico.” No feminino e não no masculino porque, no entender de Cesariny, a figura literária de Pessoa não é uma figura masculina, dado, entre outras coisas, se ausentar da faceta sexual na maior parte do tempo. 

ESTRUTURA

Esta obra está dividida em quatro partes, cada qual com o seu propósito. À exceção da última parte (denominada “Notas ao texto”), a divisão está apenas numerada com algarismos romanos. As duas primeiras partes são constituídas por poemas, a terceira por cartas comentadas pelo próprio Cesariny, ao passo que a última parte tenta solucionar (embora por vezes de forma especulativa) o que não ficou claro na poesia de Pessoa.

Na parte I, observamos poemas que parecem ter um caráter mais supostamente autobiográfico e de introdução ao livro. 

Na parte II, temos poemas em que há claramente o exercício da intertextualidade, isto é, a tomada de poemas pessoanos (principalmente do ortónimo) como mote e onde Cesariny adapta, normalmente através do pastiche, os textos originais. Desse modo, muito além de interpretar a obra de Fernando Pessoa, Cesariny lança mão dos próprios poemas do autor de Mensagem para dar-lhes uma imagem nova, dessantificada. 

A parte III pode ser vista como um acrescento epistolar: contém duas cartas inéditas de Raul Leal, autor da geração de Orpheu, assim como, na segunda edição, duas cartas apócrifas dirigidas a João Gaspar Simões, autor da segunda geração modernista, em que Pessoa ele-mesmo e Álvaro de Campos discordam do autor presencista acerca de vários temas, nomeadamente da qualidade literária de Aleister Crowley, um famoso ocultista inglês do início do século XX. A referência a Raul Leal, à primeira vista, pode parecer aleatória, mas tem uma clara intenção por parte de Cesariny. Ao colocar Leal dentro de um livro sobre a figura santificada de Pessoa, Cesariny procura lavar a sua honra e colocá-la no patamar que esta merece, ao lado das grandes figuras de Orpheu: Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, Santa-Rita, etc. “Para Cesariny, Pessoa representa a duplicidade do poeta rebelde e iconoclasta cuja imagem é branqueada pela apropriação política, (relembro a questão do túmulo nos Jerónimos).” Numa certa ótica, Raul Leal seria a imagem mais vívida e desmascarada do que Pessoa era para Cesariny e talvez precisamente por isso Leal não seja tão considerado pela crítica. Nas cartas presentes no livro, conseguimos confirmar o que afirmara Mário de Sá-Carneiro sobre Leal, numa carta a Pessoa a 5 de novembro de 1915: “é muita pena que o rapazinho seja um pouco Orpheu demais“, entenda-se, a combinação explosiva do ego inflamado, da irreverência e da violência verbal. 

Por fim, a quarta parte parece ser uma tentativa, por vezes falhada, de revestir o texto com uma roupagem mais, digamos, metodológica. Ao estilo de T. S. Eliot, Cesariny vai adicionando notas de rodapé aos poemas escritos por ele mesmo, numa dupla tentativa de, por um lado, esclarecer versos de Pessoa, e, por outro, esclarecer o leitor relativamente a referências feitas por si mesmo.

Podemos dizer que há dois objetivos principais neste trabalho de Cesariny. Em primeiro lugar, parodiar Fernando Pessoa em forma de comentário satírico de citações pessoanas, de forma a que o encaremos como um mortal e não como um supra-Camões. E, em segundo lugar, colocar-se no lugar de Pessoa nas criações inteiramente cesarinyanas, mas em que o sujeito lírico é na mesma Pessoa. Talvez, “somente ao se colocar em seu lugar é que se torna possível compreendê-lo de uma maneira ímpar na História da literatura portuguesa.” De resto, como refere Maria Prado Lessa, “Cesariny opera, portanto, uma reorganização – ou mesmo uma desorganização – da poética pessoana de acordo com sua própria atividade de leitura, criando uma relação a tal ponto intrincada com a escrita de Pessoa que, por vezes, o leitor de O Virgem Negra não sabe ao certo qual é o autor dos versos que lê, confundindo o hipotexto pessoano e o hipertexto cesarinyano. Para conseguir transitar pelos poemas, é preciso pôr em prática, também, uma atividade de rememoração da poesia de Pessoa.”

Fonte: NotaTerapia

ONDE É QUE JÁ LI ISTO?

Vamos a exemplos concretos? Vamos. Atentemos agora em dois conhecidos poemas de Pessoa que Cesariny subverteu, adicionando uma roupagem sexualizada, com uma linguagem que oscila entre o genial e o ordinário.

O poema…

“Dizem que sou um chão
De rodas de veículos,
Dizem que é assim mas não,
Eu simplesmente são
Com a imaginação.
Nunca uso testículos.
Tudo o que para que tendo
— O que me sobe, exacta,
A roda do infinito —
É como um grande membro
Que n’ata nem desata
E o próprio sôpro mata
Ao guarda de plantão
E isso é que eu acho bonito
Para meter em verso
E em psiquiatria
A trouxa do universo
E da sua gentia,
À qual não sou adverso,
Nem converso, dizia.
Por isso conto o meio
Do que não teve pé.
Livre de jaça ou esteio,
Cheio do que não é.
Não são pombo-correio.
Colhões tenha quem lê.”

… é bastante parecido com o poema Isto, de Pessoa:

“Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!”

Enquanto o poema de Pessoa, como sabemos, teoriza o fingimento poético como metodologia de criação artística, o poema de Cesariny, mantendo o tom confessional, deixa no ar a ideia de Pessoa ortónimo ser uma figura assexual, dado que não só não usaria os testículos, como deixaria esse uso para “quem lê”. Ademais, o poema de Cesariny termina com uma possível crítica à sexualidade reprimida de Pessoa, cujos críticos oscilam entre a teoria da assexualidade e a teoria de que Pessoa seria, afinal, um pederasta que se refugiava na sua intelectualidade abstrata. Em qualquer caso, ao colocar-se na pele de Pessoa e remetendo o “ter colhões” para quem lê, Cesariny coloca-se como o leitor que tem “colhões” para escrever de modo tão mordaz sobre um poeta do cânone.

Já o poema:

“É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.
O que um tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d’ir urinar.
Isso eu o quiz dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
“O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é”
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até).

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Também aquela do “outrora-agora” e do “ah poder ser tu sendo eu” foi um bom 
trabalho
Para continuar tudo co’a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.”

… É inspirado, não em um, mas três poemas do ortónimo: Aqui na orla da praia, Pobre e velha música e Ela canta, pobre ceifeira. Novamente, tal como no poema anterior, o Pessoa cantado na voz de Cesariny apresenta uma grande preocupação com o ato sexual, assim como uma grande desconfiança no órgão sexual masculino. A meio do poema a temática muda para um reexame de algumas expressões do próprio Pessoa, que este pseudo-Pessoa cesarinyano assume continuar a ter dificuldade em entender. Por outro lado, reconhece que essa dificuldade de entendimento acaba por contribuir para que se continue a tentar desvendar a sua obra para lá da sua morte, como de resto acontece. 

A LINGUAGEM OBSCENA CONTRA A PATRIMONIALIZAÇÃO EXCESSIVA

Apesar de escrita nos anos 80, já no pós-25 de abril, esta obra insere-se no vasto chapéu surrealista de reação ao regime e à forma como este condiciona a construção do conceito de nacionalidade, parecendo apenas permitir falar-se de Pessoa de forma canónica, como se existisse uma linguagem canónica autorizada institucionalmente. Ao colocar em simetria as suas reescritas com os originais, Cesariny está a extravasar por completo o estudo sobre Fernando Pessoa. No fundo, está a recuperar, nos anos 80, a voz surrealista de Breton e Dalí, onde não existem palavras proibidas nem pensamentos desviantes. Mais de trinta anos volvidos, continua a ser importante olhar para este texto para refletir sobre a dificuldade, que se mantém, em aceitarmos o valor da linguagem obscena em contexto poético, e literário no geral. Se pensarmos que o verso “masturbam [referindo-se às “filhas aos oito anos”] homens de aspecto decente nos vãos de escada”, do poema Ode Triunfal, foi recentemente omitido dos manuais de português por alegado atentado ao pudor, é fácil de entender o que Cesariny crítica. Em tempos que parecem de retrocesso na liberdade criativa, onde a sátira e a ironia estão debaixo de fogo por obra e graça peregrina de uma determinada colheita de filisteus, manter Cesariny vivo parece uma boa ideia. “Assim sendo, é importante recuperar O Virgem Negra, de tempos a tempos, pois este texto pode funcionar como instrumento de medição de uma profecia que se tende a cumprir. Nela, somos nós as criancinhas, agentes ingénuos da patrimonialização de uma figura determinante para a literatura portuguesa que veio depois dela. Uma figura que, é possível argumentar, terá metaforicamente parido a Vanguarda Portuguesa de quem os autores e artistas surrealistas também são filhos.”

ESTUDOS DE GÉNERO PESSOANOS?

Ainda que, a cada poema, se conceba uma nova construção da sexualidade de Pessoa ele-mesmo, bem como dos heterónimos, chegamos a uma conclusão vagamente sólida: Pessoa seria uma personalidade andrógina ou, mais rigorosamente, uma personalidade não-binária. Esta teoria acaba, entre outras coisas, por justificar a existência dos heterónimos. Se os heterónimos são pessoas e foi Pessoa que os pariu, então Pessoa é a mãe dos heterónimos, logo nunca poderia ser um homem: “Pessoa é o matriarca porque gera os heterónimos, também eles poetas.” Uma vez que essa faceta de Pessoa é quase totalmente omitida pela sua vida e obra, a questão da (as)sexualidade pessoana continua a intrigar os críticos e biógrafos do autor. As suposições de que Pessoa seria virgem mantêm-se. Nesta perspetiva, o ato sexual, para Pessoa, seria apenas um processo de contemplação mental, neoplatónica, visto que o eu-lírico propõe no poema “Introdução ao volume”: “quando não fodo é que fodo”. Não deixa de ser surpreendente, como refere o ensaísta António Cândido Franco em Notas para a compreensão do surrealismo em Portugal “que no meio de tanto pessoano e ao longo de tantos anos de escava na arca nunca ninguém notasse, até à chegada de Cesariny, que os heterónimos, que eram para ser gente a sério, de carne e osso, além de intelecto e alma, nenhuma vida sexual tivessem. O seu criador até horóscopo lhes arranjou, com hora e local de nascimento, mas nunca cuidou de lhes arranjar um comportamento sexual qualquer. Têm horóscopo; pilita não.” Trata-se, portanto, de um Fernando Pessoa renascido das cinzas que vem alegadamente esclarecer certos aspetos ocultos da sua biografia, para tal escrevendo poemas erotizados, um registo nunca antes visto em si.

Deste modo, além da importância de conservar esta obra como resistência ao discurso politicamente correto nas instituições, O Virgem Negra abre possibilidades novas de leitura no âmbito dos estudos de género, uma área das ciências sociais em franco crescimento atualmente na esfera académica. Como é evidente, não me parece que o facto de Pessoa ser pedófilo ou assexual, andrógino ou homem cisgénero vá acrescentar ou retirar valor ao que nos deixou, dos poemas aos ensaios, das odes às críticas literárias. No entanto, com o ressurgimento do interesse sociológico relativamente aos papéis de género e às identidades de género, revisitar Pessoa pela via Cesariny pode ser um ótimo ponto de partida. Se, como já ouvi, Pessoa leu tudo e foi tudo, então talvez seja interessante confrontar a sua biografia com a sua obra no âmbito dos estudos de género, abrindo ainda mais o leque de abrangência dos seus escritos. Fica a sugestão para quem se quiser aventurar.

[1] https://triplov.com/revistaTriplov/o-virgem-negra-revisitado/#_ftn1
[2] https://triplov.com/revistaTriplov/o-virgem-negra-revisitado/#_ftn1
[3] http://posvernaculas.letras.ufrj.br/images/Posvernaculas/3-mestrado/dissertacoes/2016/8-GomesJP.pdf
[4] https://elyra.org/index.php/elyra/article/download/280/322/
[5] https://triplov.com/revistaTriplov/o-virgem-negra-revisitado/#_ftn1
[6] https://triplov.com/revistaTriplov/o-virgem-negra-revisitado/#_ftn1
[7] http://posvernaculas.letras.ufrj.br/images/Posvernaculas/3-mestrado/dissertacoes/2016/8-GomesJP.pdf

Fonte da Imagem de Capa: Observador

Artigo revisto por: Inês Pinto

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.