Editorias, Opinião

O limite dos 18 segundos

O cavalheirismo provém da cavalaria, que, significando a habilidade em lidar com cavalos, passou no século XII a ser mais do que isso tornando-se um estilo de vida que tinha como principais regras proteger as mulheres, defender a justiça, amar a terra natal e defender a Igreja. Além de achar que três destas regras não fazem qualquer sentido, queria focar-me principalmente numa.

Amar a sua terra natal é algo que penso que naturalmente surge em qualquer indivíduo, pois ele constrói naquele local o seu espaço seguro, onde cresceu e criou memórias; mas fazer disso uma regra, além de ser impossível mudar os próprios sentimentos e forçar-se a amar algo, é altamente prejudicial para qualquer pessoa que tenha tido experiências traumáticas naquele lugar sentir-se obrigada a ter comportamentos que demonstrem amor para com esse sítio: ninguém consegue ser assim tão falso: ou têm comportamentos que estão de acordo com os seus verdadeiros sentimentos e pensamentos ou tentam convencer-se de que devem pensar da forma com agem – e aí começa a surgir na mente dessas pessoas algo como “aquela experiência traumática se calhar não foi assim tão má”, “eu deveria era agradecer melhor essas experiências em vez de ficar irritado ou irritada” ou “eu mereci essas experiências, eu sou culpado ou culpada delas” e isso está longe de ser algo saudável.

Defender a Igreja… de quê? Quando eu penso em Igreja eu só penso em privilégio; principalmente no século XII, em que se dá o apogeu clássico da cristandade medieval, surgem a Inquisição e a perseguição aos hereges, e acontecem também as segundas cruzadas (movimento de intolerância em relação a outras religiões e outras formas de pensar que forçava, utilizando a violência, as pessoas a acreditarem na sua Bíblia, que transmite que temos de amar o próximo; era um movimento coerente, portanto). Atualmente a Igreja continua com esse poder, pois eu vejo, em Portugal e em outros países ocidentais, igrejas e capelas de 500 em 500 metros e praticamente não vejo mesquitas ou templos de outra origem religiosa numa cidade inteira; vejo feriados e períodos de férias escolares na altura do Natal e da Páscoa, já para não falar de que vou a uma escola primária na última semana do primeiro período e vejo os professores a organizarem as crianças em presépio para o apresentarem aos encarregados de educação delas; e olho para a data e vejo o ano “2016”, que me diz que o nascimento de Cristo é o ponto por onde devemos começar a contar as datas da vida humana; isto em países que deveriam dar liberdade religiosa ao seu povo – somos todos católicos, ou cristãos sequer? Isto demonstra que a forma de dominação pode ter mudado, mas o poder mantém-se.

Defender a justiça parece-me ser obrigação de todas as pessoas; talvez a única obrigação que eu pensaria em colocar em alguém. Daí eu achar que as regras deste estilo de vida, não assim tão antiquado, são contraditórias: pois por um lado exigem a luta contra a injustiça e o mal e pelo outro exigem as outras três regras, que interferem com a liberdade de terceiros, e, assim, diretamente com a defesa da justiça, pois, pelo menos para mim, esta é, acima de tudo, o direito de vivência da liberdade e a tolerância desse nos outros.

Proteger as mulheres tira-lhes a liberdade que têm o direito de possuir. E atualmente esta é a regra a que o cavalheirismo está principalmente associado. Nos dias de hoje, alguém é visto como cavalheiro se abrir a porta a uma rapariga, se a deixar passar à frente dele (ato reforçado a maioria das vezes com aquela típica frase, que já ninguém, além dos apoiantes desta automatização, pode ouvir: “oh, primeiro as senhoras”, acompanhada de um riso com segundas intenções e por vezes de outro, normalmente mais forçado, por parte da vítima, que tenta não arranjar conflito enquanto pensa na forma mais rápida de dali se escapulir), se se levantar quando uma mulher entra na mesma divisão que ele – que, se já se encontrar em pé, deve levantar então outra parte do corpo, que ao menos será mais direto nos seus intentos -, se puxar a cadeira para a moça se sentar, ou se lhe ceder o lugar no autocarro, entre outras normas não questionadas, incluindo a de ser o cavalheiro a pagar a refeição tida a dois (se bem que neste caso eu concorde que ele pague 30% a mais).

Além de tratar as mulheres como seres fracos, porque, apesar de na maioria dos casos terem menos força do que os homens, não vejo ninguém à exceção de pessoas com alguma condição física a não conseguir levar um ou dois sacos na mão ou a ficar numa viagem de metro dez minutos em pé. Esse é um exagero do facto de a mulher ter em geral uma massa muscular menos desenvolvida do que a do homem utilizado como desculpa mal fundamentada para as formas de controlo que sobre a primeira são desenvolvidas na maioria das sociedades atuais (e anteriores), através de por exemplo o cavalheirismo, que existe para manter a honra dos senhores. Honra que depende da das senhoras que os acompanham, pois o valor de um homem é medido através do tipo de mulher que ele tem em sua propriedade; para isso paga-lhe a refeição, pois ela pertence ao seu acompanhante, abre-lhe a porta, pois sente-se responsável pela existência dela, e cede-lhe o lugar, porque uma senhora que se preze é delicada e não aguenta mais de 18 segundos em pé – esse é o limite: 18 segundos, e o homem vê-se aflito para não o deixar ultrapassar (e não é porque o seu valor enquanto macho forte possuidor de fêmea frágil diminuirá à vista dos outros machos, é mesmo porque ele se preocupa imenso se a senhora magoa o músculo – o qual não lhe é permitido fortalecer).

Há quem diga que o cavalheirismo é uma forma de enaltecer as mulheres, pois elas merecem respeito ao ponto de terem alguém a sacrificar-se por elas (porque deixar alguém entrar numa divisão primeiro do que ele próprio é um grande sacrifício). Mas, pelo que eu já mencionei anteriormente, este atual costume é uma forma de enaltecer quem o pratica e não quem é utilizado para o praticar. E uma forma de o provar é perguntar a quem se considera cavalheiro, ou tem como regularidade atuar consoante as regras defendidas por eles: como se sente a fazer o mesmo a um homem?

E, depois de ter colocado essa pergunta a alguns apoiantes do cavalheirismo que conheço, eu obtive uma resposta praticamente unânime entre eles: “tenho medo de que me achem homossexual”. Então admitem que essas práticas são tidas como um fim de seduzir a pessoa com a qual as praticam? Se não, então não entendo porque ao fazê-lo com um homem significa sentir atração por ele (para não falar de que o medo por isso demonstra altos níveis de homofobia); se sim, então estão a sexualizar um género por inteiro, ou objetificam mulheres em particular. Aconselho-vos a reverem a vossa definição de “enaltecer”.

Concluindo: concordo que devemos tentar ajudar os outros, ter a situação deles em atenção e ser gentis para com eles, mesmo que não os conheçamos; mas é importante que confiramos se faz sentido que o façamos, ou seja, que não estamos a segurar a porta a uma pessoa que demora dez segundos a lá chegar ou que estamos a dar o lugar a alguém que não demonstra qualquer problema em estar em pé (se bem que erros desses podem acontecer, mas devem ser exceção); e principalmente é importante que tenhamos a certeza de que o fazemos independentemente do género da pessoa que ajudamos e que, de cada vez que praticamos essa ação, pensemos nos nossos verdadeiros interesses ao tomá-la.

A Maria Beatriz Gusmão escreve com o Novo Acordo Ortográfico.