Óscares em declínio: a crise de identidade do grande festival de cinema
Em março de 1973, o mítico ator norte-americano Marlon Brando recusou um óscar na categoria “melhor ator” pela sua performance em O Padrinho e enviou, no seu lugar, Sacheen Littlefeather, atriz nativo-americana, que recebeu a estatueta e expressou as intenções do ator em sensibilizar relativamente à representação das comunidades indígenas no cinema de Hollywood.
No seu discurso, em 2011, Leonardo DiCaprio optou por aproveitar a temática do filme pelo qual foi nomeado, O Renascido (The Revenant), e fazer um apelo à problemática das alterações climáticas. Um discurso celebrado pela frase: “let us not take this planet for granted. I do not take tonight for granted”.
Dois discursos de dois grandes atores que, a meu entender, fortalecem o verdadeiro propósito da cerimónia e, em última instância, do cinema de Hollywood.
Para os fãs da sétima arte, entristece ver como a cerimónia perdeu tanta credibilidade em tão pouco tempo. O pior é haver quem, perante todo o descontentamento com a perda de relevância do evento, tivesse proposto o término de categorias mais técnicas e, para piorar, a Academia cumprir com essas exigências.
A minha posição é, precisamente, a oposta. E porque não acrescentar categorias e servir o nicho fiel que permanece até ao final da emissão (mesmo que isso implique ficar acordad@s até às 5h da manhã, por disparidade de fuso-horário)?
Afinal, trata-se de celebrar o cinema e os filmes são, em grande parte, compostos por mais do que as 21 categorias apuradas pela Academia. E porque não entregar estatuetas ao melhor trabalho de produção, ao melhor color grading, melhor reader, gaffer, genérico, à melhor iluminação ou ir, ainda mais especificamente, à direção de atores, ao melhor staging, blocking…? A razão parece-me óbvia: porque, nesse caso, o espetáculo duraria horas a fio e os canais de televisão perderiam ainda mais audiências ou, simplesmente, porque os connoisseurs do cinema acreditam que cada uma dessas subcategorias pertence a uma categoria mais abrangente, o que está, completamente, errado. O color grading complementa a montagem, mas também a fotografia, o staging e o blocking enaltecem a fotografia, mas também engrandecem as performances dos atores, e por aí fora.
Esquecem-se de que o cinema, tal como a música, é uma linguagem universal, que comunica além dos sentidos banais. “Cinema é movimento”, como dizia Bergman, e é um movimento que desperta algumas das mais profundas sensações e apela diretamente a um dos desígnios mais importantes do ser humano: o seu propósito. Desde que Muybridge descobriu que a partir de 13 quadros por segundo o ser humano percepciona movimento coerente, passando dos princípios da montagem de Kuleshov com o fim do cinema “monopontual” às etapas da jornada heroica simplificadas por Christopher Vogler para escrita de argumento, que o cinema se tornou, nem mais nem menos, na a arte do significado.
O propósito da linguagem audiovisual é, à semelhança da música, o de unir, sensibilizar, incluir e diversificar, tal como Brando ou DiCaprio apelaram ao vencer as estatuetas. Por isso, cumpra-se a sua vontade e, antes de passar a mais uma análise pouco esclarecedora do dito “tabefe”, vejamos alguns dos grandes feitos desta cerimónia.
Pela primeira vez, um óscar é atribuído a um homem com deficiência auditiva (Troy Kotsur); uma mulher ganha, pela terceira vez, o prémio de melhor realizadora (Jane Campion) e Adriana DeBose torna-se a primeira atriz de tez negra assumidamente queer a receber uma estatueta.
Agora, à análise do desnecessário:
Este ano, a cerimónia da sétima arte ficou marcada pela mão de Will Smith no semblante incrédulo do humorista Chris Rock. Recuso-me a acreditar que o sucedido não passa de um mero reflexo das tendências neomarxistas que acordaram o espírito da cultura woke.
Ainda que os astros da conspiração pareçam alinhar-se, não compreendo que se fale de “cultura do cancelamento”, da mesma forma que não acredito que seja o contexto indicado para se discutir os indiscutíveis “limites do humor”. Acredito, no entanto, no sentimento de impunidade avassalador que tomou conta do espírito do ator Will Smith naquele momento. Vejo um ator que quis provar ao mundo que o method acting, requerido para o papel de Richard Williams, o levou a tomar medidas extremas por ser “um defensor feroz da sua família”, para evitar mostrar que numa cerimónia onde os grandes egos predispostos a serem bajulados, acabam facilmente feridos pelas palavras de um humorista.
Sendo a retórica humorística o suficiente para legitimar um ato de violência, bastaria a Will Smith largar uma bomba (a)cómica no discurso ao receber a estatueta de “melhor ator”. Mas não, ao invés, Smith optou por dar o tabefe e depois discursar sobre as suas aspirações a ser um vessel of love. Acredito ser a oportunidade perfeita para citar o pensador contemporâneo, Slavoj Zizek: “The one measure of true love is: you can insult the other”.
Artigo revisto por Catarina Policarpo
Fonte da capa: MultiNews
AUTORIA
Aluno de mestrado em Audiovisual e Multimédia na ESCS. Trabalhei 1 ano como editor de vídeo e assistente de realização, e embora a paixão se mantenha, em 2020 comecei a expandir conhecimentos para seguir os meus objetivos de escrever guiões e ensinar escrita de argumento. Comecei a trabalhar como estagiário na SP Televisão. Mas foi desde jovem, na paz da Beira Interior, que criei uma grande afinidade por histórias, filmes, artes e cultura.