Pais de plástico
Queridos “pais”,
Obrigado. Não como agradecimento mas como obrigação. Sinto a necessidade de me expressar pelos outros, por aqueles que não têm como o fazer, frágeis à vida e fora dela. Vida como instituição, como padrão preconizado de atos e ações pré-concebidas e pré-aceites. Nós vivemos à margem. Somos objetos de recreio, com data expirada mesmo antes do consumo. Aceitamo-lo. Não há que granjear ou amaldiçoar a nossa sorte. Somos órfãos. Desprezados por quem nos devia amar e deixados ao esquecimento por quem nos devia respeitar. Somos o resultado lógico de abortos falhados ou catolicismo oco. Se tivermos a “sorte” de ter tido pais, então foram-nos retirados por demonstrações de “amor” demasiado fortes para a conceção da sociedade. Mas este apontamento não é para vocês (ou quase), estejam desde já descansados.
Ninguém precisa de me falar das consequências inerentes à injustiça nas sociedades humanas, em que se culpa o ladrão por roubar mas se esquece de que foram elas que não lhe deram as condições para não o fazer. Muitos argumentariam que o mundo é feito de escolhas e que a definição do caráter aí se forma, defendendo que poderia ter tomado outro rumo e numerando este e o outro exemplo de quem conseguiu ultrapassar o “obstáculo” de ser pobre e de classes sociais (como abomino estas classificações) mais baixas. É efetivamente verdade. Esquecem-se, no entanto, de que o problema não se encontra na escolha em si, mas sim nas alternativas (ou melhor, na falta delas) que se lhe apresentam nesse momento de decisão. Portanto, e não me alongando mais neste assunto, estão desculpados pais, pela vossa incapacidade de discernimento e estupidez perpétua, pelo menos aqui.
Antes de chegar ao ponto central, parece-me premente acalmar as vossas inquietações que assumo já serem de necessidade imediata. Sim, ao contrário das vossas (e de muitos) expectativas, eu até que sei escrever. Também isso terá uma explicação não muito abonatória a vosso favor, mas temos pena, apenas respondo à vossa mais que provável curiosidade. Felizmente, eu fui privilegiado com dom de gostar de ler livros e a capacidade de os poder possuir. Se há algo pelo qual eu estou grato nesta vida é por eles. Sempre presentes, amam-me à distância ou dentro de mim, conforme o estilo. Não me arranjam desculpas ou culpas arranjadas, não se aproveitam das vulnerabilidades alheias e serão, provavelmente, a única forma de perfeito, ou mesmo tolerável, rasto do espírito humano não conspurcado pela sua fascinante e inacabável capacidade de arruinar tudo à sua volta.
Agora nós. Não sei se sinta mais raiva ou pena de vocês. É definitivamente raiva. Sim, vocês, famílias de “classes” média e alta com vidas insípidas, achando que nos podem usar como forma de estimular a vossa vida. Querem presentear os vossos filhos ou ressuscitar uma relação moribunda e pensam que brincarem às adoções vai ser giro. Sentem-se realizados e convencidos de que salvaram inocentes cuja vida foi demasiado célere a emitir a sua sentença. Repugna-me. Nada mais é que uma masturbação do ego. Comprem um Nenuco ou façam uma viagem às Caraíbas, tudo menos isto. A forma como jogam com a esperança de quem nunca a pôde ter, só para perceber, uns meses mais tarde, que o produto afinal tinha defeito e não era bem aquilo que estavam a espera, devolvendo o defeituoso para a fábrica. Estavam à espera de quê? Que fossemos perfeitos? Que bastava uma mudança de ambiente, que nos víssemos rodeados por fausto que apagávamos o nosso passado, vivendo às expectativas completamente erróneas e, sinceramente, cristalinamente estúpidas de quem nos “comprou”? Será que foi publicidade enganosa? Devíamos falar com a nossa agência e ver isso.
Não era suposto quem tem maiores níveis de educação ter uma capacidade maior de compreensão do mundo? Claro que temos defeito; o estranho é estarmos minimamente operacionais. Fomos escorraçados da nossa herança. Somos literalmente os restos que sobraram e ninguém quer. Possuímos cicatrizes profundas que nunca irão sarar por completo, e vocês deviam ser minimamente capazes de compreender isso. Não acontece, e nada me revolta mais que ver chegar constantemente crianças que puderam voltar a sê-lo por uns instantes, presentearem-me com um aceno quase imperceptível mas com um significado tão claramente sombrio. Sim, o mundo permanece igual.
Termino com um apelo. Se realmente pretendem significar vidas que não as vossas, então sim, dêem-nos uma oportunidade de sonhar. Respeitem as falhas e munam-se para a guerra, pois vos garanto, se ganharem, nada será mais forte que um amor conquistado de um coração dorido.
Apenas mais um filho de ninguém.
O João Garrido escreve com o novo acordo ortográfico.