Opinião

Popular ou populismo?

Cristina Ferreira não é só uma apresentadora de televisão, não é só uma empresária de sucesso, não é só uma cara bonita que lidera audiências. É, sobretudo, o rosto da ascensão social portuguesa.

No tempo dos meus avós, uma rapariga da Malveira estaria sempre condenada a ser a saloia que vinha à cidade vender couves ou servir nas casas mais ricas. Mas, Cristina Ferreira, hoje uma mulher de sucesso, que influencia diariamente centenas de milhares de espectadores, que vende roupa aos milhares, não teria, não há muitas décadas, outra coisa que fazer que não passasse por servir, nem outra coisa que vestir que não uma saia remendada e um avental coçado. É isso que o público – que, para o que aqui interessa, é na verdade Portugal – vê nela. E é natural que goste. É até sensato que goste. Que a admire e que respeite o seu percurso profissional e social. Fazê-lo é, em bom rigor, reconhecer o avanço da sociedade portuguesa e elogiar a democratização.

As elites gostam de tudo isto em teoria, mas não conseguem chegar ao ponto de reconhecer mérito a quem o tem. E as novas elites, que descendem de gente que veio do sopé das serras, também não gostam do elogio público de pessoas como Cristina Ferreira. Talvez por não gostarem de lembrar de onde vieram os seus pais e os seus avós – do pastoreio, da agricultura de subsistência, do pé descalço, do piolho, da subserviência para com os senhores. Talvez, também, porque só o jeito de Cristina Ferreira na televisão lhes lembra tudo isso. O tom de voz, as calinadas na gramática, aquele lado “saloio” de quem parece continuar na feira a martelar estacas e a anunciar pares de cuecas baratas apesar de estar na televisão. Talvez por outras razões. Não sei.

A verdade é que o português comum a adora. E adora-a porque se revê nela. E mesmo quando não se revê, é aquele modelo que deseja para os seus filhos e para os seus netos. O sucesso depois da miséria. A riqueza depois da fome. A igualdade depois da criadagem.

Por mais absurdo que pareça, a admiração que a sociedade portuguesa tem por Marcelo Rebelo de Sousa é, em tudo, semelhante. Marcelo não veio do nada, pelo contrário. Mas foi o primeiro a perceber (ou pelo menos a ter sucesso na aplicação prática dessa perceção) o fenómeno popular e a compreender que a política é, hoje, mais espetáculo que substância. E encaixa no conceito como uma luva. Quarenta anos depois de um comentário político insignificante, Marcelo chegou onde podia chegar.

As elites estão agora a levantar reservas quanto ao populismo ou ao popularucho do Presidente da República. Por um lado, porque, de um campo ideológico ou de outro, querem que Marcelo olhe mais para o seu lado do que para o outro. E, porque estão a começar a achar excessivo que a Chefia do Estado esteja a cargo de um personagem (mais que uma personalidade) comparável a um qualquer Manuel Luís Goucha. As elites não terão outro remédio que não lidar com isto.

Primeiro, porque o povo adora Marcelo da mesma forma que adora os apresentadores dos programas da manhã. No caso, não pela ascensão social, mas pelo alegado lado simples que Marcelo cultiva (mesmo que ao limite do ridículo). Este é o Presidente do povo porque se comporta como o povo – e porque se esforça por se parecer com ele. É o Presidente que fala “tu-cá-tu-lá” com a Rainha de Inglaterra e que vai a entrevistas no fim dos jogos da Seleção Nacional. Mesmo que tudo isto soe, a todos os que reservam uma dose razoável de bom senso, uma patetice digna de um artista de circo. Segundo, porque Marcelo não fará por agradar a nenhuma das fações ideológicas ou partidárias que o país, mal ou bem, tem. Ainda que o faça mais por feitio do que por sentido de responsabilidade, Marcelo fará o que sempre fez: vazio de ideologia e livre de lealdades que não a sua própria agenda e o seu próprio jogo político, dará sempre uma no cravo e outra na ferradura, continuará a trair, a falar redondo, substancialmente pouco claro e formalmente inatacável, Marcelo é, também aqui, o Presidente que o povo quer e de quem o povo gosta. Porque o povo continua – talvez, até, de forma sensata – higienicamente afastado dos conflitos ideológicos e partidários que Lisboa tem.

Eu desejaria mais do que isto. Nem que seja porque um Chefe de Estado não pode ser um género de apresentador de televisão em botões dourados e gravatas monocromáticas. Mas é com o que podemos contar para os próximos anos. O que não se percebe é que a comunicação social, sempre tão ágil a identificar os populismos e as vacuidades, continue com Marcelo ao colo em tudo, quando o que se lhe exigia era o elogio a um Presidente popular e próximo das pessoas, mas o apelo a um Presidente recatado e formal no que assim deve ser. O que se exigia era que houvesse alguém a acertar o passo ao Presidente e explicar-lhe que Cristina Ferreira tem os seus méritos, mas que ele não tem de ser um modelo semelhante no Palácio de Belém. É que não há nada de errado em ser um político popular. Errado é cair no ridículo e na palermice.

Corrigido por: Beatriz Pardal