Música

Preacher’s Daughter — A história por detrás do concept album de Ethel Cain

Aviso Prévio: Este artigo fará menção a alguns temas mais pesados como uso de drogas, abuso sexual, homofobia, disforia corporal e morte. 

Tudo começa numa pequena cidade na Flórida, com o nascimento de Anhedönia. Ela cresceu com aulas em casa e integrada numa comunidade Baptista do Sul, uma religião integrada no cristianismo protestante na qual a pouca cultura com que tinha contacto se limitava aos cânticos da igreja.

Anhedönia não sentia que aquele era o seu lugar, e tudo piorou quando, com 12 anos, contou à sua família conservadora sobre a sua homossexualidade. Numa entrevista ao them, revela que depois disso sentiu-se presa numa caça às bruxas feita pelas pessoas da comunidade em que vivia. Com o passar dos anos, tudo isto culminou na sua saída da cidade, aos 16 anos, para se mudar para Tallahassee, na Flórida. 

Durante a fuga, o que ocorreu foi um período de disforia, o que faz todo o sentido, sendo que, com 20 anos, Anhedönia assumiu-se como uma mulher transgénero. Além da disforia, naquela altura surgiram também várias drogas pesadas como escapatória da realidade, e a criação de música eletrónica sob pseudónimos. Algures nesta altura, surgiu também o conceito de Ethel Cain. A cantora conta numa entrevista que Ethel foi a sua salvação divina, a sua escapatória.

Ethel Cain é, atualmente, o nome artístico de Anhedönia, mas é também a personagem cuja história nos vai ser contada no álbum conceitual Preacher’s Daughter.

Ainda na mesma entrevista antes mencionada, Anhedönia diz sobre a personagem:  “Se eu sou o final bom, ela é o mau”. Vamos compreender porquê.

A história do álbum começa em 1991, com a morte do pai de Ethel Cain, que era o padre da cidade e o homem que abusou sexualmente dela durante a sua vida. 

Conhecemos a protagonista em American Teenager, no qual esta se encontra embriagada e  reflete sobre a morte do irmão do vizinho, a morte do próprio pai e a sua tentativa de o substituir ao participar em atividades da igreja. O irmão do vizinho surge como a representação do chamado “american dream”, uma vez que este morreu a servir o exército no contexto da Guerra Fria. Apesar dos temas, o instrumental em si é bastante angelical e até feliz.

Em A House in Nebraska Ethel lamenta o término com o seu ex-namorado numa música de sete minutos em que revela que, apesar de todo o seu trauma religioso e relação complicada com Deus, ainda tem fé Nele para proteger o homem que amou. O instrumental acompanha a música perfeitamente e leva o ouvinte numa viagem emocional e intensa que culmina num solo de guitarra absurdamente arrepiante.

Fonte: TEETH

Thoroughfare conta-nos que, algures no Texas, Cain encontra-se na beira da estrada quando um homem aparece numa carrinha e, depois de algumas palavras, a convida a entrar. Ela acaba por aceitar e, eventualmente, o trauma acumulado de que nos fala nas faixas Family Tree, Western Nights e Hard Times acaba por ser projetado na relação que desenvolve com ele.

Podemos compreender mais sobre o relacionamento dos dois em faixas como Gibson Girl, em que fica explícita a toxicidade da relação, já que Ethel está a ser emocionalmente manipulada  pelo amante sem ter noção do que está a acontecer. Chegamos então a Ptolemea, o auge artístico do álbum, no qual Cain entende, não só a toxicidade da sua relação, mas também que não tem salvação e, assim como as mulheres da sua família, inevitavelmente terá um fim trágico. Com um instrumental sufocante que incorpora desde barulhos de moscas a choro agonizante, esta faixa sufoca o ouvinte com os vocais dolorosos de Cain, que se encontra num episódio alucinatório causado por drogas. Mais ou menos a meio da música, a cantora começa a implorar repetitivamente pelo fim até que o seu choro se torna selvagem e surge então uma guitarra elétrica no instrumental, que transporta toda a sua raiva e desespero para aqueles que a ouvem.As duas próximas faixas são instrumentais que representam a morte de Ethel Cain. August Underground mostra-nos a tentativa de fuga de Ethel Cain do homem que lhe ofereceu boleia no Texas e que mais tarde se revelou um assassino psicopata, enquanto Televangelism é a representação da sua ascensão à pós-vida.

Fonte: Crack Magazine

Sun Bleached Flies é provavelmente a música mais bem escrita do álbum. Nela Ethel Cain reflete e expõe os seus pensamentos relativamente a Deus, quando já se encontra no céu. Mesmo com todos os problemas que a igreja lhe causou, ela diz: “What I wouldn’t give to be in Church this Sunday / Listening to the choir, so heartfelt, all singing.” (O que eu não daria para estar na igreja neste Domingo, ouvir o coro, sinceramente, a cantar).  No entanto, existe confusão da parte dela e a sua relação complexa com a religião é exposta especialmente quando Ethel diz “God loves you, but not enough to save you” (Deus ama-te, mas não o suficiente para te salvar). No seu total, a música explica-nos a visão de Ethel Cain e é quase como se o ouvinte fosse capaz de compreender todos os detalhes da sua perspetiva e a razão de ela ser assim, bem como compreender a sua dor de ter passado a vida à espera de algo que nunca se concretizou.

O álbum termina com chave de ouro: Strangers. Aqui encontramos pela última vez a protagonista do álbum, que agora é uma freezer bride – encontra-se congelada no frigorífico do homem que lhe tirou a vida. Ethel culpa-se a si mesma por tudo o que lhe aconteceu, já que sempre a avisaram das consequências de certas ações, como falar com estranhos. A música procura validação e perdão tanto de um amante como da religião que não a aceitaram como ela é. Depois de um álbum focado nos seus problemas e traumas, agora a personagem reflete na dor causada pela sua morte aos que ficaram.

Os últimos versos são dirigidos à sua mãe. Ethel diz-lhe “Mama, just know that I love you / And I’ll see you when you get here” (Mamã, fica a saber que te amo, e vejo-te quando chegares aqui). O álbum termina desta maneira para refletir a culpa que Ethel sente por ter deixado a mãe sem explicação do seu significado. Assim, Preacher’s Daughter canaliza a história de vida de Ethel Cain e o seu trauma através de vocais tão horripilantes quanto angelicais e instrumentais tão sufocantes quanto libertadores, narrando assim desde o momento em que a protagonista fugiu de casa até se encontrar congelada no frigorífico de um canibal psicopata.

Fonte da capa: Avery Norman

Artigo Revisto por Catarina Policarpo

AUTORIA

LinkedIn | + artigos

Com interesses em várias áreas, a experimentação faz parte do currículo da Joana. Atualmente estudante de Publicidade e Marketing na Escola Superior de Comunicação Social, quer desenvolver o amor que tem pela escrita utilizando a Magazine como ponto de partida. Desde a música, passando pela política, filosofia e até ficção, são várias as áreas onde pretende deixar as suas palavras escritas.