St. Vincent: uma educação para as massas
Durante uma década, a discografia de St. Vincent assumiu-se como um distanciamento da música estandardizada: um rock experimental, um pop distorcido, um indie nada palpável. Aos 35 anos, qualquer classificação continua a ser desnecessária e pedante.
O estado americano do Texas não é propriamente o local ideal para se formarem estrelas rock: conhecido como um dos locais-chave para o incremento da música country, as estrelas musicais de lá preferiam idilicamente a guitarra acústica aos power riffs, as rimas alternadas aos ritmos polissémicos. No entanto, durante a sua adolescência, Annie Clark cresceu aos ouvidos de Hank Williams, Johnny Cash e Patsy Cline – nomes notórios da música western, que hoje em dia ainda influenciam a artista.
Aos 12 anos, mostrou interesse no mundo da música e decidiu aprender a tocar guitarra. A partir daí, Pantera, Metallica e Soundgarden foram os seus professores para além da formação académica – coisa que rapidamente se tornou fatigante para Annie: “Acho que na escola – sendo ela escola de arte ou secundário – tem de existir obrigatoriamente um sistema de regras, uma unidade de classificação objetiva que te diz se és bom ou não. A uma determinada altura, tens de aprender tudo o que conseguires e depois esquecê-lo de modo a fazeres realmente arte”.
Annie Clark seguiu este conselho e esquece-se de tudo o que aprendeu institucionalmente sobre música. O primeiro passo foi renascer enquanto St. Vincent – nome tirado da música “There She Goes, My Beautiful World”, de Nick Cave. O resultado tornou-se num projeto, já com mais de 10 anos de carreira, que recebeu aclamação por parte de críticos, fãs e profissionais do seu zeitgeist. A devoção à sua arte é cirurgicamente estuda ao mais pequeno detalhe, fazendo com que a emoção de uma letra passe, quase como por osmose, para a seguinte.
A frase “real e estranha” parece adequada para descreve o encanto que Clark tem enquanto compositora: é uma guitarrista talentosa e geracional, que consegue tornar o ridículo e o catártico em algo remotamente descomplicado e são. Ao vivo, os dedos controlam ao máximo o seu instrumento com imensa precisão – esta é a parte “real”. O “estranho” vem através da composição: algo quase críptico, sublime, mas pungente. Em termos líricos, o refrão costuma ser a parte mais apaziguante, feito normalmente com um hook cativante; no entanto, os versos são complexos e meticulosos. Há, afinal, um resultado positivo, nem que seja da forma mais sarcástica possível: “Oh, what an ordinary day; take out the garbage…masturbate” (retirado da música “Birth In Reverse”).
Esta quase equação matemática que acabei de fazer à mestria de St. Vincent transparece-se claramente nos cinco álbuns de estúdio. Com eles, a parte estética ocupa também um papel importante. Cada álbum segue um padrão visual restrito e, mais importante, nunca repetitivo: “Gosto de aliar cada disco a uma personagem, a um arquétipo completamente distanciado de quem sou. Poderão ser um subterfúgio para chegar à St. Vincent, mas nunca direi”, contou à revista FADER, em 2014. Sendo assim, seguem-se as seguintes personas: princesa maquiavélica da Disney (“Actor”, 2009), dona de casa suburbana em analgésicos (“Strange Mercy”, 2011), líder de um culto futurista (“St. Vincent”, 2014) e uma dominatrix emocional (“MASSEDUCTION, 2017).
Mesmo com géneros, arquétipos ou rótulos, de música a música, o catálogo de St. Vincent é difícil de organizar homogeneamente. Com uma voz que pode variar entre Björk e Bruce Dickinson, dos Iron Maiden, o elemento de surpresa é algo constante, especialmente durante as atuações ao vivo: “Quero ser coerente comigo mesma. As coisas tendem a falhar quando os artistas pensam que são demasiado bons para que tal aconteça. No momento em que me virem a fazer a mesma coisa duas vezes, então falhei para o meu público”, contou, desta vez, à revista Rolling Stone.
Ainda a falar sobre surpresas, ao longo dos últimos anos, a carreira de St. Vincent tomou um rumo pouco inesperado. Ao lançar o seu quarto auto intitulado álbum de originais, a cantora ganhou um Grammy – para melhor disco alternativo; ao qual respondeu: “Alternativo ao quê?” – foi nomeada para outros diversos prémios, atuou com os membros restantes dos Nirvana, tornou-se amiga de grandes celebridades como Taylor Swift, e namorou com a modelo Cara Delevingne. De um dia para o outro, o seu status enquanto personalidade tornou-se em algo curioso, mas ao mesmo tempo dividido. Enquanto St. Vincent, era uma artista respeitada por uma legião de fãs que acompanhou o seu percurso; enquanto arm candy de uma das modelos mais famosas da sua geração, era a “mulher misteriosa”, a “desconhecida parte corações”, um alimento refrescante para os tablóides se confortarem. Pela primeira vez, sentiu como é ser vista por todos, de diferentes maneiras e de diferentes convicções: “Ter certos níveis de fama… ser adjacente à fama é bastante agitado. Se for um subproduto natural de fazer aquilo que amo, então não tenho qualquer problema com isso. Mas há certos níveis, que, a meu ver, são completamente inalcançáveis e nocivos”.
A produção em massas de conteúdos triviais num universo emocionalmente distante e de rápido consumo atormentou Clark – agora sendo uma figura famosa. No seu último álbum, MASSEDUCTION (não, não é Mass Education), editado em Outubro do ano passado, na faixa “Pills”, ouve-se a história de alguém que foi difamado pela própria fama. A música fala sobre a animosidade que se tem ao tomar riscos: “As pessoas sentem-se demasiado confortáveis quando chegam a um certo patamar da sua popularidade”. Há um elemento de efemeridade aqui, pois o “culto à celebridade” produzido por uma cultura ocidental é, para ela, aborrecido, superficial e nunca duradouro.
O futuro é incerto e aterrorizador – aliás, a nova tournée da compositora chama-se “Fear The Future” -; contudo, o conselho que Annie conta a si mesma é um truque para manter a sua perseverança, apenar de ser um pouco cliché: “’Sê quem tu verdadeiramente és’, eu sei, eu sei, é um pouco lamechas, mas é algo que os meus pais me dizem desde pequena. Custa-me perceber a verosimilhança desta afirmação na sua totalidade, mas é tudo o que tenho”, desabafou antes de iniciar a nova série de espetáculos, o ano passado, em Nova Iorque. O sentimentalismo é uma constante, mesmo que se mascare nesta nova imagem de padrões monocromáticos, vestuário subtilmente sensualizado e uma expressão mais cansada, mais experiente.
MASSEDUCTION é o resultado não só de uma adversão ao futuro da condição humana, mas também de uma abordagem satírica do presente. Singles como “New York” e “Los Ageless” – para além da bifurcação geográfica – mostram esta dualidade entre um frenético e exacerbado hedonismo e uma melancolia desamparada e receosa. Quando, na mesma entrevista, lhe perguntaram o que justifica o medo do futuro na era em que se vive, Annie Clark não hesitou e, de uma maneira assertiva, respondeu: “Já viste o descalabro destes últimos anos? Não tarda nada até nos tornarmos Amish da tecnologia”.