Opinião, Sem Categoria

Um relato privilegiado em tempos aterrorizantes

Vai fazer um ano desde que foi detetado o primeiro caso positivo de Covid-19 em Portugal. Agora até já se diz por aí que o vírus circulava no planeta meses antes de 2020. Considero-me uma pessoa razoavelmente otimista. Tento basear-me na lógica e não na emoção quando construo expetativas. E, de facto, achei que não viveríamos outro ano como aquele que passou. Bem, de facto, vamos viver um ano diferente. A questão é: diferente para melhor ou para pior?

Para variar, tudo depende de nós; de cada um de nós. A culpa não é do ano de 2020, não é do vírus, não é dos chineses, não é do teletrabalho ou da telescola. É nossa, individualmente. Para o bem e para o mal, todos abrimos exceções a dada altura; fomos menos cautelosos, desvalorizámos a situação atual. Mas importa agora, mais do que nunca, inteirarmo-nos sobre a sua gravidade e sobre a importância de, de uma vez por todas, nos submetermos às ordens de quem nos governa. Não é com irreverência, com rebeldia ou com insubordinação que vamos lá. O resultado desse tipo de posições está à vista. E “o pior cego é aquele que não quer ver”.

Eu também já apanhei um susto. Almocei com uma amiga que, infelizmente, contraiu o vírus. Por mais ínfimo que tenha sido o tempo que passámos sem máscara, o contacto foi, indubitavelmente, de risco e deixava pouca margem de manobra. Este descuido valeu-me duas semanas fechada em casa, inclusivamente no meu aniversário. Apanhou-me numa das piores alturas, mas podia ter sido bem pior. O resultado do teste que realizei chegou negativo. Mesmo assim, deu para experienciar a zaragatoa (que não é um bicho papão) e para confinar mais uma vez.

Tenho a sorte de ter um ambiente espetacular em casa, o que faz com que cada confinamento decorra na maior das tranquilidades. Faz-me alguma confusão, claro, não poder levar a vida “normal”, mas, no que toca ao facto de ter de passar tempo com o meu núcleo familiar, podem vir mais confinamentos. O pior destas alturas, diria, é mesmo o efeito que surte perante a faculdade. Roubou-me, até agora, os semestres mais práticos da Licenciatura que foram completados a meio gás, à base do desenrascanço. É uma modalidade importante, mas não deve ser a base de todas as unidades curriculares que nos deviam ajudar a meter a mão na massa. Se o próximo (e último) semestre não sofrer uma volta de 180º (o que duvido), não vou sair daqui grande cozinheira. Vai ter de ser à base dos take-away e dos UberEats

Ocupação existe sempre durante os confinamentos – quanto mais não fosse a carga exagerada de trabalhos com que nos deparamos. A verdade é que fica tudo entregue – com melhor ou pior qualidade, com o que se arranja e até com o que se inventa. Mas a análise à arte do desenrascanço fica para um próximo artigo. O primeiro confinamento, ali entre março e abril, foi novidade para todos. Na minha perspetiva, passou a correr e não custou assim tanto (sem ser pelas razões que referi anteriormente). O segundo, imposto pelo contacto de risco que tive, foi mais duro. Tanto pelo medo de estar infetada (e tudo o que isso implica), como pela tristeza de passar o meu aniversário em casa.

Uma imagem com chão, pessoa, parede, interior

Descrição gerada automaticamente

Sim, vivo nesta realidade e sei que não havia espaço para festas de arromba. Mas o simples facto de poder ir dar uma volta ao ar livre faria a diferença. Felizmente, algumas das pessoas mais importantes para mim vieram visitar-me –  tanto na rua como no hall do prédio –  para darem alguma felicidade àquele dia. Cantaram-me os parabéns de máscara e, na hora de soprar as velas do bolo que trouxeram, houve ali um impasse. Lá se apagou a chama com os devidos cuidados e todos comeram a sua fatia, com direito a desinfetante (não na fatia). 

São estes gestos que fazem valer a pena. Gestos impensáveis se tudo estivesse normal. Entre eles cantar os parabéns pelo Zoom ou por qualquer outra plataforma que permita videochamadas ou reunir por lá com os amigos durante uma noite só para conversarmos, jogarmos uns jogos, fazermos companhia uns aos outros. Arrisco-me a dizer que sem a Covid este tipo de cenários não aconteceria. Era normal ficarmos umas semanas ou até meses sem falarmos como deve ser, devido à carga horária imposta pelas faculdades e pelos empregos. 

Uma imagem com carro, exterior, rua, estacionado

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Neste terceiro confinamento (segundo ‘geral’), as notícias são ainda mais sombrias. A esperança que as vacinas deviam trazer é anulada pelo descuido característico desta sociedade – é o típico “morrer na praia”. Quando os outros países estavam a passar por maiores dificuldades, parecia-nos um pesadelo inalcançável. Agora, enquanto estão a entrar nos eixos e a proceder à distribuição da vacina, os portugueses decidem deixar de temer o vírus. Vá-se lá entender…

Agora é esperar que as medidas surtam efeito; que todos coloquem a mão na consciência e que a vacinação corra da melhor forma. Não sei quanto a vocês, mas eu tenho saudades de abraçar os meus avós. Sei que sou privilegiada ao escrever isto, mais que não seja por todos aqueles que já não têm os avós presentes há anos ou, ainda pior, por quem os perdeu recentemente. Lamento imenso qualquer um dos casos. E não quero imaginar essa dor. Até à data, ninguém da minha família próxima apanhou o vírus. Não posso dizer o mesmo dos meus amigos e das suas famílias, mas, felizmente, nenhuma das situações foi grave.

Falo apenas da dor que conheço. Tenho a sorte de os meus avós serem meus vizinhos e de estarem a uma porta de distância. E nem assim consigo ir ter com eles. Não me perdoaria se algo acontecesse por minha causa. E bem sei que nunca teria um desfecho positivo, visto que ambos já estão na casa dos 80 e são considerados de risco. Nesse sentido, prefiro sofrer por saber que nenhum deles entende o porquê de a sua única neta não os visitar, achando que já não quer saber deles, a sofrer por ter sido egoísta e ter trocado um abraço por tantos outros de que poderemos desfrutar no futuro. 

Uma imagem com pessoa, exterior, mamífero, primata

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É da convivência com os meus avós que tenho mais saudades. De poder estar com eles na rua ou em casa. Além disso, sinto falta das grandes aglomerações de pessoas, como em concertos ou em discotecas – não pela sensação de “sardinha enlatada”, mas por toda a atmosfera adjacente. São sempre momentos únicos, menos regulares, que proporcionam um tipo raro de felicidade. Também tenho saudades de ir ao cinema e de comer as pipocas que só lá sabem fazer; de poder estar com os meus amigos de forma descontraída ou de poder ir comer fora sem levar um desinfetante atrás. 

Ainda assim, o vírus vai deixar várias sequelas, sendo uma delas a nossa consciencialização perante os germes. Enquanto me “lembrar desta”, dificilmente me apanham sem estar acompanhada de álcool gel. Tocar nas superfícies dos transportes públicos, nas mesas dos serviços ou até nos equipamentos da faculdade nunca pareceu tão nojento quanto agora. E não tem mal nenhum passarmos a incorporar alguns dos cuidados de agora nos próximos tempos. Mal seria se tudo isto fosse em vão.

Artigo revisto por Andreia Custódio

Todas as imagens foram cedidas por Mariana Coelho

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