Literatura

Crônica de uma velhice ensonada

A felicidade é uma partida de mau gosto. Dizem-nos que está lá, mas não o conseguem provar, nem mostrar. Talvez nem o conseguem sentir. Perdoo-lhes o erro como lhes perdoo-o a tristeza: ambos têm o seu lugar no mundo. O resto, como se diz, é a inevitável dor do ser, essa leveza que é pesada por não pesar. Uma dor sarada por não sarar.

É engraçado como escrever nos liberta. É quase uma melodia, uma harmonia mental que se apodera de nós, substituindo imediatamente a lógica pela pauta da linguagem. A partir daí, é fácil: basta deixar escorrer a música. Em cada sílaba segue-se a seguinte. Criam-se palavras que sabem a notas. Sempre num sentido e cadência constante e tranquilizante. Cada palavra gerada é uma pequena anestesia, um momento de prazer, de não dor, onde a realidade finalmente se funde com a perceção.

Admitimos, nesse instante, que não existe diferença alguma: aquilo que sentimos é aquilo que vemos e a nossa alma é o resultado da nossa perceção da realidade. Não existimos porque pensamos, existimos porque sentimos. Mais, o mundo existe na medida em que o sentimos e ele nos sente a nós.

Talvez isto sejam só disparates, uma diarreia mental de quem já não tem em si força para criar sentidos. Por isso mesmo, limito-me a deixar escorrê-los sem regras ou lógica, apenas palavras atrás de palavras.

O sono já começa a fazer-se convidado, toldando-me (ainda mais) o julgamento. Peço que este mundo me perdoe a dor, me perdoe a futilidade da minha existência, o ridículo das minhas preocupações. O universo é tão extenso que se torna tão absurdo como necessário sofrer do mundo.

As mãos já tremem; a banda já hesita; as cortinas já se começam a fechar. O mundo vai perdendo a cor, a nitidez, a resolução. Sobram as sombras. O rasto. Resta somente a poeira, mas esta jamais fica para durar. Somos todos pó. Pó dos astros que se movem em conformidade com o tempo, essa ilusão de sentido que nos cria a crua desilusão de significado.

Não percam tempo comigo e por favor não se gastem com os outros. Devem-se a vós permanecer inteiros, oferecendo apenas por multiplicação. Sim, talvez já eu esteja senil, perdido num mundo que não me reconhece. Também, de que serve a sanidade? Não se compra nem vende, não se especula, e muito menos se lucra. Talvez se use e quiçá se partilhe, mas perde sempre no câmbio.  

Amem. Mesmo que vos doa. Mesmo que não vos doa. Amem porque sim, porque amar é sentir por dentro e por fora, por cima e por baixo. Amar é sentir e sentir é existir.

Obrigado por tudo. Divago, talvez sinta a velhice a chegar, talvez já a tenha em mim. Falta-me, infelizmente, a resignação, a aceitação de que nada está realmente sobre o nosso controlo e que a vida nada é mais que um rio e nós nem sequer somos um peixe. Não somos nada. E apesar de não termos para onde ir não temos como parar.

Artigo revisto por Catarina Gramaço