Opinião

Dicionário web-summitês-português

            A páginas tantas do Livro de Desassossego, Fernando Pessoa – ou Bernardo Soares, como preferirem – escreve, a respeito a língua portuguesa, a afirmação que se segue:

            “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a página mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente.”

            Saltemos o caráter visionário destas frases que parecem prever, com uma inocente e despropositada acutilância, a decadência do português escrito e do falar bem português. Foquemo-nos numa moda (wishful thinking sem querer) que tenho vindo a acompanhar com redobrado interesse: palavras ou expressões importadas do inglês que têm vindo a substituir palavras ou expressões que a língua portuguesa contempla. Introduzir léxico anglo-saxónico à bruta e avulso em frases já ganhou mais raízes do que André Ventura no poleiro político-partidário. E sim, Chico da Tina, estou a ver-te. Porque esta moda já não se cinge ao indefectível Web Summit. Qual gripe espanhola, esta praga já chegou à lírica musical, ao léxico comum conversacional dos jovens e, mais grave, da população mais velha, oriunda de uma época em que o francês era a língua franca. Quando o meu professor da cadeira de rádio, do alto dos seus sessenta anos, proferiu a expressão “whatever”, com um inglês irrepreensivelmente aportuguesado, os alarmes soaram.

            Este artigo é puro serviço público e, bem vistas as coisas, um exercício de autoaprendizagem. De seguida, apresentarei uma lista de palavras e expressões inglesas que já se instalaram tão comodamente no dicionário oral português como um chinês com visto Gold em Lisboa. Cada vocábulo terá uma tradução e explicação feita por mim, um totó nestas lides, para vós, leitores, eventualmente totós como eu, ou então uns modernaços (palavra que se auto anula porque não é nada modernaça) e não vão perceber o engagement que estou aqui a tentar desenvolver através de um brainstorming e uma atitude bué polite com este conceito bué trendy.

            Bootcamp – o equivalente a um congresso da Juventude Popular: agrobetos, calças beges, camisas azuis, muita fé nos três pastorinhos e, claro, muito empreendedorismo e discursos inspiradores, camaradas! Ups, esqueçam esta parte.

            Brainstorming – as ideias de negócio que surgem a um pastilhado no Neopop às quatro da manhã.

            Coliving – forma que a nova geração de adultos encontrou para não admitir que os seus empregos precários não lhes permitem sequer alugar um quarto só para si numa grande cidade.

            Crowdfunding – pedir esmola a desconhecidos para a realização de projetos que têm tanto futuro como o Chicão… e porque são pobresm porque o pai não é, definitivamente, o Chicão.

            Engagement – a capacidade de prender uma comunidade de néscios através de um discurso pseudo-intelectual que é, na verdade e maioritariamente, publicitário e populista.

            Giveaway – a arte de oferecer coisas em troca de seguidores.

            Life coaching – a arte de enganar pessoas com baixa autoestima e baixa literacia com discursos retirados do pensador.com. Ou, como diria Gustavo Santos: uma segunda-feira normal.

            Lounge – estratégia de negócio que consiste em colocar qualquer transeunte num espaço a pagar dez euros por uma caipirinha sem achar caro.

            Manager – o antigo gestor. Problema: há mais managers do que se poderia supor. Hoje já não há trolhas. Há managers de material de construção civil. Hoje já não há lixeiros. Há managers de resíduos urbanos. Bem, já perceberam.

            Mindfulness – inserir definição de “life coaching”.

            Networking – meter uma cunha, mas com estilo.

            Pitch – apresentação rapidinha e convincente da nossa empresa, como se fôssemos concorrentes do Shark Tank e nos cortassem o pio tão rapidamente como o Ferro Rodrigues ao André Ventura.

            Rebranding – única forma viável de empregar licenciados em design.

            Rooftop – o mesmo que “lounge”, só que mais alto.

            Sales assistant – pessoa que está na caixa da Primark e quer parecer credível de forma a que não percebam que estudou na Universidade da Vida.

            Startup – empresa com as mesmas probabilidades de sobrevivência que o CDS.

            Sunset – festa realizada com o único propósito de encher o Instagram com (ainda) mais ‘fotos artísticas’ (o quanto amo esta expressão) de pores-do-sol.

            Trendy – uma moda que provavelmente é estúpida.

            E é isto. Ao que parece, nos dias de hoje, o inglês torna qualquer coisa mais profissional e mais credível. E, com uma sub-repção de fazer Isabel dos Santos corar de vergonha, vai envenenando a língua que, um dia, um zarolho a nado no Índico imortalizou.

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.