Cinema e Televisão

Elle, um jogo do gato e do rato

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Estreou em França no mês de Maio, mas só agora o mais recente trabalho do holandês Paul Verhoeven chega às salas de cinema portuguesas. Elle é uma adaptação do romance “Oh…” de Philippe Djian, que retrata a história de Michèle LeBlanc (Isabelle Huppert), chefe-executiva de uma companhia de videojogos, que é violada no introito da narrativa. Uma trama controversa e introspetiva, Elle foi a escolha francesa para o prémio de Melhor Filme Estrangeiro dos Prémios da Academia.

Logo de início percebe-se o rumo que Verhoeven quer seguir, ao brindar a audiência com a crua cena da violação, momento em que se dá o mote para o desenvolvimento da protagonista. Não recorre aos sensacionalismos de Hollywood e mantém um ritmo lento e pausado durante todo o filme, quase como se estivesse a pautar o estado de alma de Michèle, que se revela pouco incomodada, ainda que bem marcada, pelo sucedido. Este facto, o de deixar passar em claro uma violação, é um dos pontos de relevo da história e certamente causará controvérsia junto do bloco feminino. Contudo, é fundamental para revelar os traços da personagem principal – uma mulher que não é a mulher comum da sétima arte, seja cinema ocidental, oriental ou do Pólo Norte. Vemos dois lados distintos, cuja junção resulta num equilíbrio assertivo que a parece conduzir ao abismo, tornando-a tão única e essencial para o clímax da obra. Influenciada por um passado penoso, Michèle tenta manter-se otimista e relutante, porém, apesar de se mostrar perspicaz, não consegue afugentar o seu lado mais frágil e perturbado afetado pela violação, que vai guiar o rumo dos acontecimentos. A caracterização da personagem foi transposta para o público com elevado sucesso graças ao trabalho de Isabelle Huppert. Destacando a sua convicção enquanto desempenhava o seu papel, a atriz teve em Elle uma das mais notórias perfomances da sua longa carreira, provando mais uma vez que a escola francesa é, de igual modo, rica em talento na área da representação.

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Ainda que não esteja provido de ação durante a sua totalidade, o filme introduz questões sucessivas à audiência, ao longo do seu desenlace. Ainda que a resposta relativa ao principal evento acabe por ser revelada durante a transição para a segunda metade da narrativa, Verhoeven consegue surpreender e deixar o público preso ao ecrã com mais uma panóplia de dúvidas que trazem a certeza de imprevisibilidade. Não se foca apenas na violação e em tudo o que se seguiu em torno desse episódio. Todas as personagens, por mais secundárias que sejam, têm sempre um papel a cumprir até ao final, papel esse que tem a exclusiva finalidade de desenvolver e evidenciar a evolução à qual Michèle é sujeita em termos emocionais no decurso do filme. Só assim o realizador consegue manter o suspense presente, servir uma cataplana de incertezas (onde eu fiquei sempre à espera de um twist de última hora) e limar todas as arestas para que no final não tenham sobrado dúvidas às quais não foram obtidas respostas.

Além disso, os diálogos são bastante sólidos e coesos (ainda que tenha recorrido ao auxílio das legendas, uma vez que o meu francês está ao nível do francês de um treinador de futebol nacional), fluem com naturalidade e permitem o constante desenvolvimento dos protagonistas. Através destes diálogos, Verhoeven consegue retratar a faceta mais podre e pervertida das relações humanas, onde prevalece a cegueira, a ganância, o narcisismo e a traição – principalmente na narrativa entre Michèle e o seu violador. Sim, não foi um acontecimento pontual. A entrada num estado de negação da protagonista levou a que os espectadores testemunhassem algo semelhante a um jogo do gato e do rato. E já que refiro o caso, a forma demasiado frontal como este tópico extremamente sensível foi abordado pode levar os jurados da Academia a torcer o nariz quanto à sua presença na lista final para o prémio de Melhor Filme Estrangeiro. Mas merece lá estar. Merece porque explora a natureza emocional e relacional dos humanos como poucos produtores o fazem. Aliás, e tentando não ser demasiado corrosivo nas comparações, a verdade é que o logrou melhor que Brooklyn ou Carol, baseando-me em alguns filmes aclamados do ano transato, ainda que as suas premissas difiram.