Opinião

Manifestação sem máscaras: o respeito é o pré-requisito da liberdade

Como diz na minha descrição de autora, procuro sempre desafiar-me na escrita e o grande desafio deste artigo foi: como escrever sobre a parvoíce que foi a manifestação de dia 20 de março sem chamar parvoíce, insinuando que todos aqueles que participaram ou concordaram são parvos? Bem, chamem-me Tom Cruise, porque esta é uma Missão Impossível.

O protesto fez parte do movimento World Wide Demonstration, que promoveu já vários protestos semelhantes por todo o mundo – não sei se ache confortante o facto de não ser um defeito exclusivo do povo português ou se hei de ficar preocupada pela escala global da parvoíce.

Eu entendo que as pessoas estejam frustradas e possam não concordar com a forma como o Governo está a gerir a pandemia que era o propósito central da manifestação, mas o problema é que as intenções nem sempre se traduzem em resultados. Já ninguém nos media falou do papel do Governo, mas de como os participantes eram uns idiotas (eu disse que era impossível não os insultar). As manchetes das notícias e posts não liam “De facto, abrir no Natal foi uma burrice e algumas das regras de confinamento são incoerentes”, liam “De facto, estas três mil pessoas sem máscara são burras e incoerentes”.

A partir do momento em que desrespeitaram as regras de distanciamento social e o uso obrigatório de máscaras na via pública, toda e cada pessoa naquele protesto perdeu a razão. Não tinham o direito de pôr em causa o progresso de meses de confinamento, de arriscar contrair o vírus e de encher hospitais de novo, desrespeitando o trabalho e descanso dos profissionais de saúde e prolongando o recolhimento obrigatório do país. Se era pouco provável que todas as três mil pessoas contraíssem o vírus? Sim. Mas, sendo que o organizador estava infetado, criou-se uma nova cadeia de contágio e não estou muito confiante de que pessoas anti-máscara, anti-distanciamento, anti-confinamento e anti-vacina sejam capazes de extinguir essa cadeia. A realidade é que aumentou o número de casos e isso deve pesar na consciência de quem esteve presente.

Expresso | Quem é o rapaz que, aos 21 anos, fechou a avenida da Liberdade
Fonte da imagem: Expresso

Também não me passa despercebida a ironia de que aumentar os casos de COVID-19 é completamente contraproducente com o suposto propósito da manifestação. Cada vez que alguém contrai o vírus, a pandemia é prolongada no tempo, pelo que, se aquelas pessoas tivessem ficado em casa, existiriam menos casos da pandemia que, na sua opinião, tão mal gerida está a ser.

Só porque não concordamos com leis não quer dizer que as podemos desrespeitar. Ninguém adora usar uma máscara, não poder abraçar pessoas livremente há mais de um ano ou ficar fechado em casa durante meses. Mas isso não nos dá o direito de agirmos como mimados contrariados. Usar máscara e cumprir o distanciamento social é regra por algum motivo – e nem o Governo gosta destas medidas, mas são necessárias. Para a pandemia acabar o mais rápido possível, essas são medidas necessárias. Cada vez que não as cumprimos e alguém se infeta, é mais tempo que continuamos com as restrições. E, para mim, as restrições são mais do que bem-vindas, porque em nenhum dia o facto de eu usar uma máscara ou de manter o distanciamento vai ser pior do que uma família perder o seu rendimento por causa das restrições, de alguém não se poder despedir de uma pessoa que ame e que morreu da doença ou do que médicos estarem a ficar com sérios problemas mentais por tudo aquilo que experienciam diariamente. Se há alguma coisa que eu possa fazer para isso não acontecer, ou acontecer com menos frequência, eu faço. E qualquer pessoa que não pense assim e prefira estar no meio de 2999 pessoas a cantar “Grândola Vila Morena” assusta-me.

Cresci a ouvir “a tua liberdade acaba quando começa a dos outros”. E a tua liberdade acaba quando pões a saúde de pessoas em risco durante uma pandemia. Queres protestar e fazer com que a tua voz seja ouvida? Entendo e admiro. Mas pensa nas circunstâncias e consequências. Sê inteligente e criativo. Podiam ter arranjado alternativas para trazer o desagrado para a agenda mediática e para a atenção dos líderes do país e seriam todas mais bem-sucedidas do que a reportagem que, de facto, aconteceu que pouco ou nada explicava as queixas dos protestantes. 

Como nota final, partilho um conselho: sempre que eu não sei se aquilo que estou a fazer é correto, penso “teria problemas em dizer a alguém próximo que fiz isto?”. Acho que estas pessoas deviam ter pensado “se eu dissesse a um amigo médico que ia manifestar-me sem máscara no meio de 2999 pessoas, ele dava-me um estalo?”. Se calhar muita gente teria ficado em casa.

Fonte da imagem de destaque: Correio da Manhã

Artigo revisto por Ana Sofia Cunha

AUTORIA

+ artigos