Editorias, Opinião

“Mas não há sossego – ah, nem o haverá nunca!”

*Esta crónica encontra-se no seguimento da seguinte crónica:
Haja dó do pobre Pessoa
Recomenda-se a leitura ou releitura da crónica acima assinalada para a compreensão da apresentada em seguida. Obrigada.*

Um certo cronista do site P3 do jornal Público decidiu no passado dia 3 de novembro colocar mais uma pedrinha no caminho de Fernando Pessoa. Por esta altura, deduzo que o poeta já pudesse ter reunido pedras suficientes para construir uma réplica de Windsor à escala real. É uma pena que, mesmo que estivesse vivo, “o pobre Pessoa” não tivesse otimismo para se lembrar de construir um castelo. E, ainda que tivesse abusado do seu adorado bagaço, é garantido que a sua autocrítica e o seu bom senso impediriam a redação de um banal verso sobre a utilização de obstáculos a seu próprio favor.

Creio que Fernando Pessoa estimaria a intenção subjacente à crónica “Haja dó do pobre Pessoa”, de Nelson Nunes. Agradecer-lhe-ia inclusive, por carta, a tentativa de resguardar os seus versos da banalização e de o poupar à reprodução maníaca da sua débil figura. Evitaria até, por gentileza, referir-se à falha na reprodução da expressão “voltas no túmulo”, que acabou por resultar na estranha imagem de um Fernando exausto a andar em círculos em torno do seu pilar no Mosteiro dos Jerónimos – dando as referidas “voltas à tumba” -, e não na intencional imagem de um Fernando às voltas no seu caixão – dando as conhecidas voltas na tumba. O que Pessoa não perdoaria a um autointitulado escritor seria sem dúvida o descuido e a insensibilidade da atribuição de uma citação que não lhe pertence. Em especial, indigná-lo-ia a ideia de que uma citação de tão baixa qualidade fosse assumida como parte pertencente ao seu espólio de elevada qualidade literária.

Este tipo de ocorrências são pedrinhas passíveis de incomodar qualquer escritor que se preze – ainda que esteja morto -, e qualquer escritor que se preze tem a noção deste incómodo. É uma pena realmente que Nelson Nunes, enquanto escritor, não compartilhe dessa noção.

É de lamentar ainda que, dado o tema da crónica em questão, o cronista não tenha conseguido vestir bem o seu disfarce de jornalista. Um jornalista a sério não se limita a supor que algo comummente atribuído ao indivíduo x é pertença real desse indivíduo. De facto, o verdadeiro jornalista existe exatamente com o propósito de desfazer este tipo de mal entendidos, que denigrem as imagens dos grandes autores e lhes dão um constante mal-estar durante o sono eterno. Isto porque um jornalista a sério investiga, confirma os seus dados. Mas é óbvio que não se pode pedir isto a quem só se arma em investigador em vez de usar realmente as armas de um.

O Facebook não é efetivamente o melhor local para recolher frases inspiradoras. Em geral, é quase impossível não esbarrar com apócrifos na internet. Optar pelos livros como fonte de recolha de material é sempre uma opção mais viável. Nelson Nunes tem toda a razão nesse aspeto. Para a infelicidade de Pessoa, no entanto, parece que o cronista não sabe servir-se dos seus próprios conselhos. Afinal, “pela boca morrem o peixe e Oscar Wilde”… e ao que parece Nelson Nunes também.

Joana Costa escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico