O caso ‘Twitch Plays Pokémon”
Pokémon fez 25 anos de existência no dia 27 de fevereiro de 2021. Durante este período até ao presente, a marca teve vários sucessos com os jogos lançados, merchandising, animé e juntou uma grande comunidade de fãs por todo o mundo.
Mas o assunto aqui não se foca nos jogos, nem no merchandising da marca, mas num fenómeno digital que aconteceu em 2014 e, ainda hoje, está em funcionamento.
A 12 de Fevereiro de 2014 apareceu um canal na Twitch chamado ‘Twitch Plays Pokémon’. O criador deste canal, que ainda permanece anónimo, fez um software de teste de um dos jogos de Pokémon, que faz com que a personagem se mexa de acordo com o que os espetadores da stream querem ver. O canal autointitula-se de “I’m a robot playing Pokemon, I don’t know what I’m doing, tell me which buttons to press”.
O software começou as suas experiências com o primeiro jogo lançado pela marca, o Pokémon Red. Há quem considere este fenómeno infantil pouco importante, por ser apenas um videojogo, mas há um grande impacto aqui: há uma cooperação a nível mundial de jogadores que têm todos o mesmo objetivo – passar o jogo.
E é aqui que começa uma das maiores experiências a nível digital de uma geração.
Gotta catch ‘em All
Para quem não sabe a história do jogo, passo a explicar: consiste numa personagem principal, que é a personagem que o jogador controla e a quem damos um nome (pode ser o nosso ou um nome fictício). Através de uma narrativa, a personagem parte para uma aventura, sonhando com a ideia de ser o melhor treinador de pokémons. O lema “Gotta catch ‘em All” é o slogan do jogo, dizendo que “temos de apanhá-los a todos”. Podemos apanhar todos os pokémons, dar-lhes nomes, usá-los para combater ou simplesmente guardá-los para coleção. À medida que avançamos no jogo, deparamo-nos com obstáculos: vilões (conhecidos como a Team Rocket), treinadores que nos abordam a meio do jogo para combater; pokémons selvagens, encontrados no caminho; cavernas sem luz e partes do jogo com pedras ou árvores a tapar o caminho que só se conseguem passar quando a personagem ganha um item específico (ou, para quem sabe, os HMs Rock Smash e Cut).
O objetivo para ser o melhor treinador do mundo é derrotar os quatro líderes mais fortes (conhecidos como Elite Four) e o campeão (Champion). Para isso, é preciso conseguir oito crachás para ser aceite na Liga Pokémon (PokeLeague) e uma equipa equilibrada com níveis altos ou compatíveis com os níveis dos líderes.
Twitch Plays Pokémon
O software presente nesse canal da Twitch reconhecia os botões do GameBoy: right para a direita; left para a esquerda; down para baixo; up para cima; botões A e B (A avança e B cancela); start para o botão de start; e select. Estes botões eram ativados à medida que os jogadores presentes na stream escrevessem no chat.
Quando a stream ficou online, os espetadores e utilizadores acederam e começaram a escrever os botões no chat do canal. A personagem ia-se mexendo de acordo com o que era escrito. Muitas vezes era uma confusão, devido ao número de jogadores que estavam presentes na stream. Este fenómeno tornou-se num desafio para todos os jogadores, em que cerca de pelo menos um milhão de jogadores participou ao mesmo tempo.
Quando havia labirintos ou puzzles a meio do jogo era difícil avançar. Com isso, o criador do software resolveu o problema, acrescentando um pormenor ao jogo: o modo anarquia e o modo democracia. O modo anarquia era o modo já existente em que todos escreviam o botão que queriam ativar e a personagem ia-se mexendo. Já no modo democracia, o botão com maior voto num espaço de trinta segundos seria o botão ativado. Este último modo foi criticado por colocar o jogo mais lento, mas foi eficaz para fazer os puzzles.
O canal chegou aos 750 mil espetadores em apenas dois dias desde a sua estreia. Passaram-se mais três dias e o canal atingiu os 6,5 milhões de espetadores. Quando o jogo chegou ao fim, depois de longos 15 dias, o canal atingiu cerca de 36 milhões de visualizações e recebeu um prémio Guiness de “The most participants on a single-player online videogame is 1,165,140, and was achieved by the Twitch community “Twitch Plays Pokemon” who played Pokemon Red” (“o maior número de participantes num jogo de single-player é de 1,165,140 e foi alcançando pelo canal Twitch Plays Pokémon” que jogou Pokémon Red”).
A comunidade
Os jogadores dentro da comunidade criaram fóruns e memes à medida que o jogo ia avançando. Os fóruns do Reddit serviam para discutir próximos passos, fazer perguntas e reflexões sobre os dias de jogos (fórum do reddit: https://www.reddit.com/r/twitchplayspokemon/).
Dentro dos memes, devido à afluência de jogadores, os pokémons recebiam nomes aleatórios como “ABBBBBBK(“ (Charmeleon) e “JLVWNNOOOOO” (Rattata), em que depois eram tratados por Abby e Jay Leno. Criou-se um culto à volta do Pokémon Red: quando os jogadores conseguiram um item chamado ‘Helix Fossil’, os jogadores carregavam tantas vezes sem querer no item que o consideravam uma divindade, criando o meme do “Praise Helix”, símbolo da anarquia. Foi publicada uma bíblia sobre todo o culto ao Deus Helix (que se pode encontrar aqui: https://issuu.com/audreydijeau/docs/the_book_of_helix_kanto_and_johto).
Os jogadores conseguiram capturar um Pidgeot, denominando-o ‘Bird Jesus’, assim como o pokémon lendário Zapdos chamado de ‘Archangel of Justice’ ou ‘Anarchy Bird’.
A adrenalina intensificou-se quando apareceram trolls na stream que atrapalhavam todo o caminho de todos os treinadores de pokémons que estavam a jogar.
Outros pokémons foram capturados com dificuldade, até que o jogo sofreu um dos piores dias para a comunidade, ao qual os jogadores chamaram ‘Bloody Sunday’. Nesse dia, a stream foi invadida por trolls e vários pokémons foram soltos e apagados do jogo, saindo da coleção e da equipa da personagem.
Com isso, os jogadores tiveram de arranjar alternativas para cobrir os estragos desses trolls, então arranjaram um Flareon ao qual apelidaram de ‘False Prophet’.
Outro meme criado pela comunidade e que foi levado como um dos maiores obstáculos do jogo chama-se ‘The Ledge’, em que a personagem sempre que caía num relevo não podia voltar para trás, a não ser dar a volta e recomeçar o caminho. Ora, considerando que estão aproximadamente um milhão de jogadores a jogar ao mesmo tempo, a personagem caia sempre e tinham de voltar a fazer o caminho até ao objetivo.
Há um grande crowdsourcing, em que cerca de aproximadamente um milhão de jogadores têm um papel para conseguir chegar ao fim do jogo.
O fenómeno apresenta uma cultura de convergência onde há um “fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de media, à cooperação entre múltiplos mercados mediáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação” (Jenkins, 2006). O BBC News, Polygon e The Guardian falaram sobre o canal. (https://www.bbc.com/news/technology-26417482; https://www.polygon.com/2019/2/12/18221792/twitch-plays-pokemon-anniversary; https://www.theguardian.com/technology/2014/feb/24/twitch-plays-pokemon)
Há uma narrativa storytelling que leva os jogadores para dentro da mesma que é a narrativa do jogo.
E, claro, há um conceito presente de Jenkins, o conceito de transmedia, em que “uma história transmedia desenrola-se através de múltiplas plataformas de media, com cada novo textos contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo”. A história começou na Twitch e foi-se espalhando pelos fóruns do Reddit e memes nas redes sociais, onde se criaram mais memes, uma religião e uma bíblia que foram incluídas na história.
O canal continua ativo e vai colocando outros jogos de Pokémon em stream. Ainda hoje há pessoas a ter a sua oportunidade para jogar. E tu também podes: https://www.twitch.tv/twitchplayspokemon
É claramente comparado a um Matrix e Star Wars em termos de impacto: a marca criou carros, aviões, espetáculos ao vivo, cartas, jogos, concursos e championships, lojas… e este fenómeno veio dar outra abordagem a Pokémon e mudar especialmente a Twitch, para sempre. Ainda há dúvidas? Perguntem a Helix: https://askhelixfossil.com/
Artigo revisto por Adriana Alves
Fonte da foto de capa: Slate na Twitch Plays Pokémon
AUTORIA
Ana Rebelo é licenciada em Ciências da Comunicação pela UAL. Farta da escrita de notícias e reportagens, Ana quis sair dessa prisão e embarcar pela escrita criativa e pela opinião, falando dos seus próprios interesses, sem qualquer obstáculo. De momento, frequenta o mestrado em Audiovisual e Multimédia na ESCS, dá aulas de piano e teoria musical e é músico.