Editorias, Opinião

Sentido

Meu filho,

Escrevo-te do passado, porque este agora ainda não me pertence. Perguntaste-me qual era a coisa mais importante que se podia fazer aqui, neste mundo. Resolvi dar-te a mesma resposta que o meu pai me deu aquando a mesma pergunta.

Acerquei-me perto dele, tinha 5 anos, praticamente a mesma idade que tu, e perguntei-lhe… Depois de uns momentos que pareceram séculos de profunda e minuciosa reflexão, retorquiu:

– A resposta a essa pergunta vais-ma tu dar quando o teu filho te perguntar o mesmo.
O silêncio da sala quase me sufocava, como tantas outras vezes em que o meu pai, tão velho e tão sábio, deixava uma verdade tão evidente, mas ainda tão distante a pairar no ar.

Até ao momento em que te vi pela primeira vez, na maternidade, onde não passavas de uma bola enrugada e ensanguentada de gente, pensava na frase do meu pai como um testemunho de uma vida vivida, onde a experiência é a melhor conselheira, como se costuma dizer, e bem. Como se o sentido fosse ganho pelo uso, ou o pensamento precedido pelo ato.

Depois vislumbrei-te os olhos, e, nesse momento, o mundo começou a olhar para mim. Não quero parecer ingrato, a vida nunca me foi particularmente madrasta, o que quero que percebas é que nesse momento foi como se acordasse; descobri outro mundo além deste, um despertar para uma existência que não a minha, e ao mesmo tempo tinha de ser. Como se as raízes da minha alma deixassem de estar presas em mim e agora proliferassem pelos outros, por ti.

Tal como o mundo, também nós giramos sobre nós próprios. Todos os dias abrimos os olhos e vemos o mundo projetado a partir da nossa cabeça, do nosso lar. Quando chegaste até mim e te peguei ao colo, deixou de ser o meu mundo para passar a ser o nosso. Vi-me por ti e percebi que nunca mais seria o mesmo. Não o poderia ser.

Sentes a gravidade a deslocar-se, explicando-te, num espaço de nano segundos, que tu já não podes ser tu, pois tens de ser tu a partir dele, vais passar a ser o canal para o mundo, o seu próprio mundo.

E isso muda-te, a passagem do “deves ser” para o “tens de ser” transforma-te. O querer deixou de fazer sentido, eu tinha de ser. Para ele o mundo inteiro era pouco, não chegava. A felicidade total e inexorável deste momento só pode ser parcialmente comparada à felicidade na infância, já que nos sentimos inteiros precisamente por não termos consciência desse total. Mas aqui não. Somos inteiros e sabemo-lo. Aliás, somos além de nós, somos parte integrante da vida, deixamos de ser apenas seres que habitam na terra para passar a fazer parte dela. Eu sou o mundo porque tu és o meu mundo, e o resto é silêncio, como dizia o outro.

Quando sorris, há mais oxigénio no mundo. E quando algo te faz chorar, te mostra o quão frágil podes ser, eu morro um bocadinho. Tornaste-me num homem em paz, precisamente por a deixar de ter. A perceção da totalidade permite-me aceitar a morte com um sorriso no rosto. Antes eu que tu. Que tenhas este mundo e o outro, tantos quantos te bastem.

Portanto, quando o meu neto se sentar ao teu colo e perguntar o sentido da tua vida, da minha vida, diz-lhe isto. Ou então dá-lhe um gelado, os miúdos são muito fáceis de contentar.

Aqui te espero,
O teu Pai.