Sófocles, Balsemão e Anthony Zuiker entram num bar
No livro A Interpretação dos Sonhos, Sigmund Freud, o primeiro psicanalista de que há memória, escreveu:
“O seu destino [de Édipo] move-nos apenas porque poderia ter sido o nosso – porque o oráculo lançou sobre nós a mesma maldição antes do nosso nascimento. É o destino de todos nós, talvez, direcionar nosso primeiro impulso sexual para a nossa mãe e nosso primeiro ódio e nosso primeiro desejo assassino contra nosso pai. Nossos sonhos nos convencem de que é assim.”
Começo por aqui, porque, por muito bizarro que possa parecer, atualmente, Freud é mais famoso do que Sófocles, o autor da peça Rei Édipo, que reconstrói o mito helénico de Édipo, um homem fadado por um terrível oráculo a assassinar o seu pai e a casar e ter filhos da sua própria mãe. Eu próprio, porque vergonhosamente não segui carreira de estudos em Cultura Clássica (e tanta falta me faz), conheci primeiro Freud, depois o complexo de Édipo (sintetizado no excerto acima) e só depois a peça do dramaturgo natural da península Ática, por esta ordem.
Todavia, embora muito houvesse a discorrer sobre como de Édipo se chega a Freud, não vou por esse caminho, eventualmente, um pouco gasto. Hoje proponho-me a fazer publicidade a título gratuito. Se ponderei seguir estudos clássicos, não estaríeis certamente à espera de que tivesse talento para o negócio. Farei publicidade à tragédia grega para que não seja esquecida. Ela, a sua estrutura, entenda-se, explica de onde vem a organização da ficção fílmica dos nossos dias, pelo que é sempre importante relembrar a origem das coisas, pois, esquecendo o passado, estamos irremediavelmente entregues à usurpação e ao plágio, sem que tenhamos ferramentas para os identificar.
Estrutura
Estruturalmente, é usada uma disposição tripartida: prologos – em que uma ou mais personagens introduzem o drama e explicam o pano de fundo da história; párodos – o desdobramento da história em si; e exodus – em que é revelado o desfecho do enredo e o destino dos protagonistas. Parece-lhe familiar, não é assim? Pois bem, isso é porque esta continua a ser a estrutura básica de qualquer filme, série ou telenovela que não esteja tão preocupada assim com a subversão ou inovação estética. Assim, esta é uma estrutura segura e eficiente que permite o sucesso fácil, porque é organizada e segue uma sequência lógica até ao clímax. Tanto assim é que a Poética de Aristóteles, obra que, entre outras coisas, sistematiza a tragédia clássica, continua a ser estudada nas escolas de teatro. Como o latinzinho, a tragédia grega é a basezinha para se fazer um teatrinho jeitoso. E Rei Édipo é particularmente exemplar, no sentido em que é, segundo Aristóteles, a tragédia grega por excelência, a mais perfeita e simbólica. Há apenas um aspeto estrutural que cai: os coros. Nas tragédias gregas, o coro, composto por pessoas comuns, representa, por norma, mas não sempre, a consciência coletiva, a “moral correta” ou a “voz da razão”, como se quiser chamar. Essa figura perdeu-se, porque se revelou não ser necessária para cumprir o objetivo de moralização, de que falarei à frente com mais detalhe.
Sobre o clímax gostaria de me deter mais um pouco. Nesta peça, existe claramente uma construção, pista a pista, até que a verdade se torne insuportável para Édipo, que se autopune com o exílio de Tebas e a cegueira física (“não há mais nada que valha a pena ver”– palavras do próprio). De forma a validar ou a infirmar a profecia do Oráculo de Delfos, Édipo leva a cabo, em nome próprio, uma bateria de interrogatórios a populares, quase como se de um detetive se tratasse. A forma como Sófocles estrutura de modo perfeito a reconstrução da cena em que Édipo assassina o seu pai Laio (sem saber que era seu pai) tem um reflexo fiel nas séries de investigação criminal dos nossos dias. De facto em facto, a verdade vai destapando o seu véu e os justos, por norma, vencem no fim, ao passo que os injustos têm a devida punição. E é particularmente curioso que Sófocles dominava a técnica da “ameaça de clímax”, isto é, construir uma situação que causa no espetador uma sensação de desfecho, para depois, in extremis, prender o espetador ao episódio seguinte. Quem é que também usa a técnica da “ameaça de clímax”, levando o espetador a assistir ao próximo episódio? Pois.
Mímesis e kátharsis
A tragédia grega é igualmente fundadora dos conceitos de imitação e de catarse, bases da cinematografia de massas dos nossos dias. A imitação (ou mimese) é a recriação da vida humana, das ações humanas e da condição humana. Esta fórmula continua a ser vencedora, no sentido em que é também uma condição humana o interesse pela imitação das suas próprias ações de forma ficcional, porque há um sentido de identificação impossível de negar. Cada um de nós gosta de assistir a um filme porque aquilo podia estar a acontecer connosco e, por outro lado, é mais cómodo encarar a realidade de forma mediada do que encará-la na sua crueza corpórea. Como Aristóteles refere na Poética, ver uma recriação teatral de um animal morto não causa tanto horror como ver um animal morto na vida real. Já a catarse acaba por funcionar como o objetivo final da mimese: moralizar. A recriação das ações humanas é feita, por regra, mediante uma estruturação maniqueísta das personagens: existem os bons que fazem o bem e são exemplos pela coragem, bondade ou honestidade; e existem os maus que fazem o mal e são os exemplos daquilo que não é moralmente correto: a injustiça, o roubo, a mentira. Assim, através do exemplo, da compaixão e do medo, a tragédia grega procura horrorizar o espetador, de forma a que se processe uma limpeza emocional (kátharsis significa “limpeza” em grego antigo), uma purificação espiritual. É por isso que sentimos compaixão por Jack no filme Titanic, de James Cameron, quando este salva Rose e se autocondena à morte. Jack é um exemplo de herói clássico, ao passo que a história de amor, terminada de forma trágica, causa a comoção no espetador que sente que aquele desfecho é injusto. No caso de Édipo, a sensação é mista: por um lado, percebe-se porque o protagonista se automutila e se exila; por outro, a personagem parece um escravo do destino divino e pode ser vista também como vítima deste, e não apenas um pecador parricida.
Apolíneo e Dionisíaco
Na obra O Nascimento da Tragédia, de 1872, Friedrich Nietzsche esquematiza, de forma analógica, a estrutura dicotómica da tragédia grega. Segundo o filósofo alemão, esta vive da oposição dinâmica entre o apolíneo e o dionisíaco. O apolíneo é o lado da razão e do raciocínio lógico, ao passo que o dionisíaco é o lado do caos, das emoções e dos instintos. Esta designação advém da mitologia grega. Apolo e Dionísio são ambos filhos de Zeus. Apolo é o deus da razão e do racional, enquanto que Dionísio é o deus da loucura e do caos. A novidade aqui é que os gregos não consideravam os dois deuses como opostos ou rivais, sendo essa dicotomia proposta por Nietzsche. Em Rei Édipo, esta ambivalência é evidente: se no “interrogatório” vemos um Édipo racional, ponderado e calculista (no sentido positivo), no desenlace vemos um Édipo completamente louco e caótico, quando se lhe é confirmado que cumpriu a profecia do oráculo. Esta tensão entre apolíneo e dionisíaco mantém-se enquanto estrutura de sucesso na ficção comercial. E quanto mais exacerbada for essa diferença, ou seja, quanto menos zonas cinzentas, melhor. Se antes o objetivo era moralizar, hoje o objetivo é usar a moralização para vender, porque o moralismo facilita a identificação com as personagens.
A performance como fenómeno de massas
Consta que a paixão dos gregos pelas tragédias era tal que na cidade-estado de Atenas gastava-se mais dinheiro em teatro do que na frota marinha. Além das razões apontadas acima, este sucesso estrondoso devia-se a dois fatores. Em primeiro lugar, a encenação vivia da ilusão criada no espetador de que ele era parte integrante da mesma. Aliás, não apenas integrante, mas participante. Esta conexão é, naturalmente, implícita, de forma a não quebrar a narrativa que está a ser construída e a manter o público com a atenção e curiosidade no nível máximo possível. O segredo é o espetador imaginar-se na pele dos protagonistas, identificar-se com uma das fações e criar com ela uma relação cultural inquebrável. Em segundo lugar, o sucesso devia-se ao carácter eminentemente performativo das peças. Mais do que do texto, estas obras viviam da música e da performance dos atores. Por esta razão, não é suficiente ler as peças. É preciso assistir a elas, de forma a completar a experiência dramática que não é, assim, meramente literária, mas pan-artística. Da mesma maneira que assistir a um filme em casa através da Netflix não é exatamente consumir cinema – uma vez que a experiência completa só se consome em sala (por muito que se esperneie) –, ler uma peça de teatro, embora fundamental para o entendimento da obra, exige o visionamento da representação ao vivo. E, numa altura em que os teatros se encontram ainda em mais dificuldades do que as já crónicas, este apelo é importante. Longa vida à tragédia grega, porque é dela que parimos e é dela que nos alimentamos. Não nos esqueçamos disso.
Legenda da Imagem de Capa: Édipo a resolver o enigma da Esfinge com sucesso, o que o coroa como rei de Tebas: uma pintura de 1808, da autoria Jean-Auguste Dominique Ingres, com o título “Édipo e a Esfinge”.
Fonte da Imagem de Capa: Blog da Mari Calegari
Artigo revisto por Andreia Custódio
AUTORIA
Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.