Literatura

Brave New World e as profecias improváveis

Por ser um clássico da Literatura universal, Brave New World, publicado em 1932 por Aldous Huxley, é uma obra para a qual eu já tinha sido preparado durante vários anos. A sua leitura poderia, assim, afigurar-se uma mera formalidade. Tal, felizmente, não aconteceu. Sabia de antemão que narrava a história de uma sociedade futurista, utópica ou distópica, dependendo do ponto de vista, com um potencial profético assinalável.

Para ser justo, não se pode dizer que, quase um século volvido, a estrutura social do livro se verifique na realidade. Isso poderia constituir uma observação otimista. Porém, é preciso ressalvar duas coisas. Huxley prevê que esta será uma realidade em 2540, segundo o calendário gregoriano, pelo que em 519 anos ainda muita coisa pode acontecer. Outro facto interessante é que, em 1958, num longo ensaio intitulado Regresso ao Admirável Mundo Novo (publicado em português pela editora Antígona, tal como o seu antecessor), Huxley considera que a Humanidade se encaminha para o destino social do seu livro a um ritmo mais rápido do que o previsto em 1932. Portanto, podemos ainda estar longe da sociedade do Estado Mundial de Londres, mas estamos, parece evidente, mais perto, no sentido em que os dois grandes perigos apontados por Huxley (sobrepopulação e sobreorganização) não foram resolvidos, mas antes se acentuaram.

Este é um livro tão amplo que nenhuma review seria capaz de o retratar com um mínimo de dignidade. De resto, nenhuma review retrata com dignidade coisa alguma, a menos que essa coisa seja um livro de Pedro Chagas Freitas (“ótimo autor”, como já li, com aguçada argúcia, algures neste periódico). De qualquer modo, e perante essa complexidade, acredito que a única abordagem possível é dissertar apenas sobre uma das temáticas da obra. Nesse sentido, poderia, mas não vou falar sobre a hierarquia social baseada na inteligência, nas técnicas de reprodução controlada, na aprendizagem durante o sono, na manipulação psicológica ou no condicionamento clássico de Ivan Pavlov. Dentre todos esses temas, assustadoramente fascinantes ou fascinantemente assustadores, o que mais me chamou a atenção foi o método farmacológico usado para perpetuar a felicidade social: a soma, droga usada pelas personagens da obra sempre que o mínimo sinal de infelicidade se aproximava. E por que razão me intrigou esta substância? Duas razões, na verdade.

A primeira prende-se com a semelhança da soma (será “a soma” ou “o soma”?) com uma substância real: MDMA, vulgo ecstasy cuja utilização se popularizou desde os anos 80 até esta parte. Esta droga, ilegal, é muito popular entre raves de música eletrónica e é conhecida por gerar um efeito de felicidade aparentemente eterna, euforia, empatia e estímulos sexuais acima do normal. O psicoterapeuta Leo Zeff chegou mesmo a afirmar, nos primórdios do uso recreativo da droga, que esta colocava os utilizadores num estado de “inocência primordial”. As associações com a soma são impossíveis de ignorar para qualquer pessoa que conheça, por experiência própria ou estudo, os efeitos do ecstasy recreativo:

“‘By this time the soma had begun to work. Eyes shone, cheeks were flushed, the inner light of universal benevolence broke out on every face’ … The warm, richly coloured, infinitely friendly world of soma-holiday. How kind, how good-looking, how delightfully amusing every one was.” (Huxley, 1932)

Qual não foi o meu espanto, esta associação já foi inclusive estudada cientificamente, como comprova o artigo “Alcohol, ecstasy, Aldous Huxley’s ‘soma’”, de 2007, da autoria de Andrew C. Parrott (disponível no ResearchGate), professor do departamento de psicologia da Universidade de Swansea, no Reino Unido. Nesse ensaio, Parrott afirma: “Its acute pharmacodynamic profile was surprisingly similar to MDMA.” É certo que um ensaio não é suficiente para tornar a minha presunção numa verdade universal. Nas pesquisas que efetuei há outras drogas, legais ou ilegais, que poderiam ser uma representação atual e real da soma: ópio, cannabis, Prozac, Valium, anfetaminas (vulgo speed), mas nenhuma reuniu o consenso do MDMA. Além dos efeitos muito semelhantes, a administração por via oral em comprimido e a popularidade tornam a aproximação plausível. No entanto, a soma não tem efeitos adversos conhecidos, contrariamente ao MDMA, pelo que se mantém a questão levantada por Huxley: será possível criar em laboratório a droga perfeita? E será que isso seria necessariamente bom para a Humanidade?

Contudo, o mais impressionante nem me parece esta associação. O título do artigo remete para profecias e não me esquivarei a fazer justiça ao nome que lhe dei. Fui pesquisar sobre a história do MDMA para perceber se a soma poderia ser uma antevisão dessa. Sendo certo que a descoberta científica da substância data de 1912, o que me desapontou um pouco, o carácter profético mantém-se intacto, no sentido em que a descoberta das potencialidades recreativas e consequente uso apenas remonta aos anos 70. Pode-se dizer que o wishful thinking não saiu, neste caso, defraudado: conforme supunha, é defensável dizer-se que a soma é o ecstasy e Huxley previu isso 40 anos antes, o que é, no mínimo, digno de nota.

Uma das propostas de resposta que encontrei sobre se haveria um equivalente real da soma foi mais arrojada: “tudo o que usamos para evitar olhar para a crueza, a feiura, os impulsos primitivos intensos é a soma”. O que me leva à segunda razão pela qual me intrigou a inusitada e infalível substância. De acordo com uma notícia do Público de novembro do ano passado:

O alerta para o aumento do consumo de medicamentos sem receita médica entre os jovens soou há vários anos. E continua a ser uma preocupação crescente: 9,2% declararam ter ingerido medicamentos para ficar eufóricos, numa média que esconde variações que oscilam dos 2,8% aos 23% (na Eslováquia, por exemplo). Quanto ao tipo de substâncias, 6,6% dos jovens apontaram o uso de tranquilizantes ou sedativos e 4% de analgésicos. “Os adolescentes podem estar a optar mais por substâncias legais por acreditarem que elas são mais seguras do que as drogas ilícitas”, admitem os autores do relatório, sobre uma tendência em que os jovens portugueses ficam, uma vez mais, abaixo da média europeia, pelo menos no que toca aos analgésicos: apenas 1,8% dos jovens reportaram o seu consumo, embora 6% tenham admitido a ingestão de tranquilizantes e sedativos sem prescrição médica, em linha com a média europeia, portanto.

O artigo refere um estudo a nível europeu que chegou à conclusão de que, entre a população jovem, há novos vícios a emergir. Enquanto o tabaco e a cannabis sofreram reduções no uso, tem havido paralelamente um aumento de vícios como os cigarros eletrónicos, os jogos online, as apostas desportivas e o uso de medicamentos sem receita médica. É certo que, num período de pandemia, talvez seja inoportuno puxar este assunto, dado que é perfeitamente natural uma deterioração do estado psicológico da população em geral, levando logicamente a uma maior procura por antidepressivos – prescritos ou não. Mas há um perigo aqui: achar que esta tendência advém unicamente da pandemia e das respetivas consequências. A pandemia apenas veio despir com brutalidade uma realidade que já se vinha a acentuar, especialmente na última década: uma intensa procura por negar a realidade, que se pode dizer que começou com a crise do subprime de 2007 – que despoletou a crise económica de 2008. Desde então, a esperança no progresso infinito, base religiosa do capitalismo industrial, tem vindo a decair, assim como a qualidade de vida média da população. Não é assim surpreendente esta busca por somas que permitam tornar a realidade mais tolerável, dar algum sentido (ilusório) à vida, ou mesmo negar a realidade, criando outras, de modo a não encarar os problemas e a tristeza. E não só em medicamentos ou vícios encontramos vestígios de somas. É particularmente impressionante a tendência generalizada, com o conluio de psicólogos e psiquiatras de todo o mundo, para aquilo que já se começa a perceber ser a positividade tóxica. Proliferam como ervas daninhas ou coelhos na Austrália os gurus do sucesso profissional (estes mais no LinkedIn, sempre com as fórmulas de sucesso fácil e rápido) e os gurus da saúde mental, um fenómeno mais recente, mas igualmente curioso. Lamentavelmente, para surpresa de muitos, ambas as vertentes, embora cultivem ódio mútuo, acabam por redundar rigorosamente no mesmo: o objetivo é esquecer a dor de viver, como se esta não fosse parte integrante da existência humana. No primeiro caso, através do trabalho alienante; no segundo caso, normalizando a inércia, o lazer sem culpa, o falhanço e o conformismo.

Soma é, no fundo, tudo o que nos é apresentado como uma proposta fácil de felicidade acessível e sem esforço, desde as redes sociais à televisão, passando pelos antidepressivos ou pelos esquemas em pirâmide. Desde que a sociedade de consumo se edificou, tornando o consumo e a felicidade sinónimos, não mais foi respeitado o nosso direito a sermos infelizes e a experienciarmos esse estado de espírito durante o tempo que for necessário. Gravita por cima de nós uma aura proibicionista da tristeza, grotesca e totalitária. Não por acaso, John, uma personagem da obra e dos poucos humanos não condicionados pela sociedade, foi continuamente acusado de reivindicar o direito a ser infeliz, algo que parecia aos olhos dos habitantes do Estado Social uma estupidez sem qualquer cabimento. Não por acaso também, ao que pude apurar, a resposta mais comum à pergunta “Qual é o teu maior objetivo de vida?” é “Ser feliz”, o que, enquanto sociedade, talvez nos devesse colocar a pensar… e a ler Brave New World.

Num artigo de recensão crítica à obra, GK Chesterton escreveu:

Depois da Era das Utopias, veio aquilo a que podemos chamar Era Americana, durando tanto quanto o Boom. Homens como Ford ou Mond pareciam, para muitos, ter resolvido o enigma social e feito do capitalismo o bem comum. Mas não era nativo para nós; foi com um otimismo exuberante, para não dizer flagrante, que não é o nosso otimismo negligente ou negativo. Muito mais do que a retidão vitoriana, ou mesmo a justiça própria vitoriana, esse otimismo levou as pessoas ao pessimismo. Pois a queda trouxe ainda mais desilusões do que a guerra. Uma nova amargura e uma nova perplexidade percorriam toda a vida social e se refletiam em toda a literatura e arte. Desprezava não só o antigo capitalismo, mas também o antigo socialismo. Brave New World é mais uma revolução contra a Utopia do que contra [a rainha] Vitória.

Num período em que o regresso às velhas e bafientas ideologias é cada vez mais vincado, este é mais um livro urgente. E não é urgente apenas pelas profecias. É um grito mudo a relembrar que há uma terceira via ou até uma quarta (Huxley, provavelmente para escapar à sociedade de consumo, converteu-se às práticas espirituais Vedanta, de origem hindu) que não estamos condenados às ideologias, nem condenados a esta sociedade do espetáculo em que os artistas são tratados como bobos da corte, pagos para entreter, alucinar, esquecer; enfim, aquilo que sonsamente se chama “produzir conteúdo” para maquilhar de relevância o que não é mais do que prostituição. Huxley criou uma sociedade em que não há sofrimento. Por consequência, essa sociedade é uma sociedade sem artistas. Mas enquanto houver artistas e pensadores como Huxley, sabemos que não estamos condenados a ser apenas felizes.

Fonte da Imagem de Capa: Itcher.com

Artigo revisto por Adriana Alves

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.