Opinião

A língua portuguesa como elemento identitário

Foi um post que levantou a questão: “isto está escrito em português do Brasil”. O verbo “espoletar” que espoletou a reflexão sobre os termos que pertencem à língua portuguesa e por ser corrente noutras latitudes parece deixar de fazer parte do vernáculo. A língua formal e o dialeto. Existe limite entre ambos, algo estabelecido pelos académicos da linguística, ou este limite é tão permeável quanto é a própria formação da língua assente na sua identidade idiossincrática?

As Grandes Navegações proporcionaram a extensão de Portugal enquanto área de dominação em territórios longínquos até onde a audácia, os conhecimentos técnicos e Espanha permitiam. Como resultado, a língua foi o elemento estabelecido, tal como uma bandeira que quando fixada num território, passa por sua vez a fazer parte dele – porque a linguagem leva à construção da identidade de quem a utiliza.

No Brasil, nos primeiros anos de colonização, as línguas indígenas eram faladas inclusive pelos colonos portugueses, que adotaram um idioma misto baseado na língua “tupi”, chamando-se “nheengatu”. Por ser falada por quase todos os habitantes ficou conhecida como língua geral. Todavia, no século XVIII, a língua portuguesa tornou-se o idioma oficial, o que culminou no quase desaparecimento daquela língua comum. O crescimento populacional e a diáspora dos brasileiros levaram a que hoje a língua portuguesa seja a quinta língua mais falada no mundo, o que proporciona não só uma maior expansão cultural de tudo a que a ela é afeito, como também faz inegavelmente parte da economia. É facto que se espalha e se estende por toda a parte: Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné Equatorial, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Além disso, por razões históricas ou migratórias, falantes do português, ou de crioulo português, são encontrados também no Japão, Macau, Timor-Leste, Damão e Diu e no estado de Goa, Malaca, em enclaves na ilha das Flores na Indonésia, Baticaloa, no Sri Lanka, e nas ilhas ABC no Caribe. Portugal foi a primeira aldeia global – esta vontade, capacidade de expansão e, de alguma forma, apropriação do meio onde lhe era permitido ter agência foram aquilo que fundou a lusofonia.

Mia Couto considera a língua portuguesa como uma das línguas europeias com maior vivacidade, com maior dinamismo – “Não por causa de nenhuma essência especial do português, mas por causa de uma razão histórica que aconteceu ao Brasil, em que, digamos, Portugal deu origem a um filho maior que o próprio pai”. Ao ser adotada em África, fosse pela imposição ou pela aceitação, a língua portuguesa ganhou ainda mais tonalidade e outra musicalidade que a enriqueceram como um modo de incorporar e traduzir culturas que não lhe pertenciam originalmente.

Assim, língua e cultura constituem dois elementos essenciais na atribuição de sentido aos objetos e fenómenos que nos cercam, permitindo a formação da nossa identidade que, quando elaborada em sociedade, possibilita o reconhecimento do eu, fomentando a sua formação, sem que isto precise de estar atrelado aos limites da gramática formal. Afinal, a linguagem é viva e evolui na comunicação verbal e iconográfica, num movimento contínuo, através das relações sociais – sem essa evolução ainda hoje estaríamos a falar latim.

No caso do Brasil, em particular, no qual nacionalidade representa a maior comunidade de falantes do idioma português, a formação do seu léxico contou com vastas levas de povos de outras culturas, especialmente de origem europeia e que de tão diferentes que eram, muitos fugidos de conflitos, onde os seus países eram inimigos, acabaram por criar um acordo, no qual a língua foi o instrumento comum escolhido, ainda que fossem introduzidos termos e expressões adaptadas nas suas diferentes regiões e que hoje, fazem parte da língua portuguesa. O português foi o fio identitário comum que acolheu a diversidade e permitiu que aqueles, a quem a língua era estranha, pudessem se encontrar nela reconstruindo o significado da sua própria identidade, através da incorporação do seu valor linguístico-cultural.

Não existe identidade desvinculada do idioma, sendo o conceito da formação daquela compreendido apenas quando se entende este processo simbiótico. Curiosamente, ao mesmo tempo que temos sempre a necessidade de pertencer a alguma coisa, parece que a liberdade plena é não pertencer a coisa alguma. E no caso dos falantes de português, esta liberdade está embutida na musicalidade dos sotaques, na utilização de termos regionais que não deixam de fazer parte da língua pela sua peculiaridade que, aliás, enriquecem-na. É da agregação e aceitação destes elementos tão diversos que constituem a pluralidade da expressão através da última flor do Lácio que a identidade lusófona foi e continua a ser forjada. A língua é a expressão maior do resultado da agregação das diferenças dos seus falantes que lhe permitem também ter a sua própria identidade.

Desta forma, é válido pensar se esta busca da personalidade própria e dos movimentos que ela gera, não terá na sua génese este fluxo de trocas, incorporação, perdas e encontros, tornando-se permeável ao outro e forjando a constituição do seu todo, a partir da transposição de fronteiras, culturas e mentalidades. Língua e identidade tornam-se unas e permitem um reconhecimento mútuo dos seus significantes, onde quer que se esteja, gerando um sentimento de pertença dentro do exercício da liberdade da expressão do seu dialeto que tem o idioma português como tronco comum.

Saramago dizia que “não há uma língua portuguesa, há línguas em português. Mas isso não tira nada a evidência de que se trata do corpo da língua portuguesa. É um corpo espalhado pelo mundo”.

A língua portuguesa será sempre a mesma, não importa onde ou como é falada. Ela é plástica, criativa e generosa, porque assim a faz quem a fala e com ela se identifica, reafirmando a sua origem, a sua história, expansão e evolução permanente.

Fonte da capa: Observador

Artigo revisto por Madalena Ribeiro

AUTORIA

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Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.