A nova escravatura
Os estágios. Coisa bonita, não é? Uma boa oportunidade para ganhar experiência profissional, para conviver com colegas de profissão e para ganhar uns trocos. O problema é que encontrar um estágio pago é mais difícil do que encontrar uma edição do Correio da Manhã em que o Sócrates não esteja na capa.
Remunerar os estagiários é chato. Pensem lá bem, se vocês têm uma empresa e querem contratar mão-de-obra, qual é o preço mais baixo ao qual o podem fazer? Se responderam “o salário mínimo”, então não têm espírito “empreendedorista”! A mão-de-obra mais barata é aquela que não custa nada. Mas como é que isto pode ser? Simples: através da existência de todo um sistema estatal, económico, legal e social que permite às empresas simular a produção de “experiência profissional”, enquanto moeda de troca pelos serviços prestados. O problema é que a dita “experiência profissional” não põe comida na mesa, nem tão pouco oferece o mínimo de garantias de continuidade laboral ou de oferta de emprego.
Numerosas empresas, como é o caso do já referido Correio da Manhã, adotam recém-licenciados com promessas de experiência profissional e de futuro emprego pago. Nunca, ou quase nunca, isto acontece. Torna-se numa circulação viciosa de laboro grátis.
Sem papas na língua, digo que os negócios que subsistem à base de estágios não remunerados são escumalha imoral.
Não quero com isto desacreditar todos os estágios não remunerados. Para separar o trigo do joio, criei um teste simples que ajuda a diferenciar o bom estágio não remunerado do mau estágio não remunerado. Consiste apenas numa pergunta: a empresa onde se estagia consegue manter as funções mínimas sem estagiários não remunerados? Se a resposta é sim, então estamos bem. Se a resposta for não, então estamos perante o conceito de nova escravatura.
Acabaram-se os chicotes e a violência física, mas no geral o esqueleto do sistema é o mesmo: grandes empresas, ou empresários, contratam mão-de-obra gratuita, prometendo melhores condições de vida, e/ou futuras oportunidades de trabalho. Já não se colhe algodão, mas escrevem-se artigos e algaliam-se doentes.
A moda agora é disfarçar os estágios não remunerados, que foram ganhando alguma má fama, com o bonito eufemismo de estágios “curriculares”. Acordos entre empresas e universidades fazem com que se continue a propagar este ciclo culturalmente enraizado de labor grátis. Tenho experiência direta com a realidade médica em Portugal e posso afirmar com veemência – se os estagiários não remunerados não trabalhassem, então vários hospitais não eram capazes de funcionar. Muitos estagiários acabam até por fazer mais do que os “da casa”.
Se a existência dos estagiários é assim tão vital, não vos parece louco que estes não recebam o mais pequeno dos salários?
Estamos em 2017 e trabalhar sem receber nem dinheiro nem senhas de almoço é mais do que uma aberração. É desumanizante. Quase tanto como procurar por uma relação amorosa estável nos classificados do Correio da Manhã.
Não gosto muito do Correio da Manhã, não sei se deu para ver.
AUTORIA
João Carrilho é a antítese de uma pessoa sã. Lunático, mas apaixonado, o jovem estudante de Jornalismo nasceu em 1991. Irreverente, frontal e pretensioso, é um consumidor voraz de cultura e um amante de quase todas as áreas do conhecimento humano. A paixão pela escrita levou-o ao estudo do Jornalismo, mas é na área da Sociologia que quer continuar os estudos.