Grande Entrevista e Reportagem

“A Ucrânia não está sozinha”: os testemunhos de quem ajuda e é ajudado na Associação UAPT

Um pouco por todo o país, a solidariedade para com os refugiados ucranianos multiplica-se com várias associações e projetos que nascem à medida que a Guerra continua sem dar sinais de cessar. 

Quem chega à zona de Olaias, em Lisboa, depara-se com as cores das bandeiras portuguesa e ucraniana. É aqui que a Ukrainian Refugees (UAPT) monta alicerces, por iniciativa de um grupo de nove amigos, dois dias após a guerra começar. Nesta associação o dia parece não terminar e o cansaço é notório na cara daqueles que dão o que podem para ajudar. Desde a preparação para a chegada de mais um avião, passando pela organização de todos os bens essenciais doados, e terminando no acolhimento dos refugiados em vários municípios da região de Lisboa.

Uma coisa é certa: os sorrisos mantêm-se e os voluntários aumentam a cada dia que passa.

Comecei hoje”, inicia Maria Luísa, enquanto embala atarefadamente uma caixa de enlatados que seguirá para a Polónia. Surpreendida com a “quantidade absurda de coisas para dar”, acredita que apenas uma “única lata de salsichas pode fazer imensa diferença”. Elevando o tom de voz, Maria confessa-nos que está com “poucas forças”, mas que é gratificante “ver assim tantas pessoas e o trabalho que cada um consegue fazer”.

O ruído intenso no armazém dificulta a comunicação entre Maria e os outros voluntários. Entre o barulho característico da fita-cola para fechar caixas e os pedidos nas mais variadas línguas que atravessam o armazém, todos encontram forma de se organizarem nas suas tarefas. Sozinha, numa mesa que suporta todo o tipo de medicamentos e produtos de higiene pessoal, está Valentina. Com diferentes listas na mão, seleciona, organiza e distribui por famílias tudo aquilo que estas solicitam: desde vestuário, sapatos, roupa quente, a bens alimentares e até brinquedos para os mais pequenos. “Qualquer refugiado ucraniano pode entregar uma lista na porta de entrada com aquilo que precisa”, afirma Valentina.

Residente em Portugal, há 20 anos, Valentina é professora do primeiro ciclo, no entanto abandonou o seu trabalho por “saber que é mais precisa aqui do que do outro lado”. Marcou presença em todas as manifestações em prol da paz pela Ucrânia em Lisboa e foi na primeira manifestação que decidiu ir ajudar, juntamente com os outros fundadores. “Vim para cá de noite, comecei e ainda não acabei. Vou acabar quando a guerra acabar”, confessa Valentina, agradecendo ainda a Portugal por toda a “abertura” e “apoio” ao povo ucraniano. Emocionando-se acrescenta também que estar aqui ajuda “a esquecer aquilo que se passa lá fora”.

Valentina ocupa os seus dias a ajudar. Recebe os pedidos, em listas, que chegam da administração e prepara tudo para as novas famílias.
Fonte: Ana Cristina Barros

Muitos encaram a associação como um refúgio e uma forma de se abstraírem da realidade vivida na Ucrânia, outros sentem que é preciso falar disso. “Eu acho que isso é o pior: é fingir que não se passa nada. Isso é o primeiro passo para a indiferença e é o primeiro passo para o esquecimento”, admite Andry que tem a maior parte da família em Ternopil, na região de Lviv. No dia 24 de fevereiro relata que acordou antes do despertador tocar e lembrou-se dos seus familiares que “mesmo no pior cenário não abandonariam as suas casas”. Uma semana antes da guerra, sem saber o que o futuro reservava para o seu país, Andriy despediu-se do seu emprego e agora ocupa os seus dias a ajudar aqueles que fogem. “Não ia ficar parado só a ver televisão e ver aquelas notícias”, refere.

Ao todo a Ukrainian Refugees já recebeu cerca de 850 refugiados. “Continuamos com um acolhimento todos os dias em vários municípios…“, salienta Diogo Guerreiro, responsável pelo acolhimento, que descreve os rostos dos que têm chegado, começando por ser “uma maioria de mulheres e crianças”, “mas os idosos e algumas pessoas com deficiências motoras e psíquicas” chegam cada vez em maior número. Além do alojamento, a documentação no SEF é assegurada, bem como a procura de emprego e a integração em famílias. Com a ajuda do Call Center e da administração, que se encontra no piso superior da UAPT, a plataforma online está aberta a todos os que auxiliam e pedem ajuda.

A maioria dos recursos usados são destes amigos e fundadores que cá chegam. No entanto, patrocinadores como a Galp, a EuroAtlântico, e também outros donativos, contribuem para que esta missão se torne possível. Voluntários como Valentina, Maria Luisa e Andriy, com o trabalho que fazem nos armazéns, tornaram realizável o envio de já cerca de 200 toneladas – tanto de medicamentos, como roupa e alimentação – para a fronteira na Polónia.

Nós temos um armazém na Polónia e é lá que está outra equipa que recebe tudo aquilo que é enviado. Praticamente todo o nosso material que vai em camiões e cargas aéreas segue diretamente da Polónia para o interior da Ucrânia e é distribuído conforme as necessidades”, descreve Misha Shemly, um dos fundadores da associação.

Além das cargas que enviaram, aos aviões e autocarros coube uma missão humanitária ainda maior: resgatar os refugiados ucranianos e “dar-lhes uma oportunidade de uma vida com paz e segurança”, em Portugal. No primeiro avião 260 vidas foram salvas e no segundo, enviado recentemente, Misha faz um relato de quantas pessoas chegaram e de como se sentiu no regresso a casa:

É cansativo, mas no fim acaba por ser… a emoção que depois sentes quando vês as crianças e todas as mulheres e as pessoas a entrar e a agradecer, todos contentes por virem para Portugal, acaba por matar esse cansaço com uma certa felicidade. Trouxemos à volta de 220 pessoas neste segundo voo. Houve alguns problemas porque algumas pessoas acabaram por desistir. No dia antes sentaram-se num autocarro e foram-se embora”.

Alguns dos fundadores da UAPT no regresso a Portugal depois da segunda missão de resgate.
Fotografia cedida por: UAPT/Misha

São muitos os que ficam por não conseguirem deixar uma vida para trás. Outros por terem os seus entes queridos a resistirem na luta contra as tropas russas. Mas os que presenciam o ambiente vivido nesta associação assumem “sentir-se em casa”. Alevtina foi de férias para a ilha da Madeira, mas não regressou ao seu país. A sua família recusa-se a sair da região Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, que tem resistido à ofensiva russa. “A minha família está só em casa. Vivem no primeiro andar, é um prédio antigo, mas é um bocadinho seguro e eles não querem sair”, admite, Alevtina. Na associação ajuda sempre que pode, até porque é uma maneira de se sentir na Ucrânia, perto de quem lhe é próximo, outra vez.

Alevtina vem quase todos os dias contribuir com a “única coisa que pode fazer no momento”.
Fonte: Ana Cristina Barros

Acima do armazém onde está Alevtina estão aqueles que chegam depois de dias em bunkers e estações de comboio, aquecidos com aquilo que trazem no corpo. Numa mesa-redonda preenchida com bens alimentares e um cheiro a sopa que invade o ar está quem chegou no último voo. É esta a primeira sala, aquela em que também idosos descansam para recuperar forças, juntamente com a energia das crianças que brincam de um lado para o outro. Mas foi na sala seguinte onde encontrámos Maryna e Tanya.

Rodeadas de espelhos, camas, cobertores e um pequeno espaço dedicado aos mais pequenos, as duas primas sentem-se agora em segurança. A cidade natal de ambas é Zaporizhzhya, uma região que já está cercada pelas tropas russas. Entre alguns relatos, Maryna recorda vivamente a manhã em que acordou com as sirenes a tocar e os aviões de guerra a voar em baixa altitude: “percebemos que Kiev foi bombardeada e, de seguida, o nosso aeroporto e bases militares também”. A família ficou por lá e agora já não é possível saírem; no entanto, para proteger os seus filhos do “possível trauma do barulho das sirenes”, Maryna pegou numa única mochila que tinha e rumou até à cidade mais perto da fronteira da Polónia. O percurso foi de 28 horas, com os seus pequenos pela mão, num comboio sobrelotado e com condições precárias.

A pé chegaram à Polónia onde ficaram seis dias numa estação central de comboios, também ela sobrelotada, com crianças, idosos e mulheres que descansavam onde havia lugar.

Portugal foi o destino de ambas por ser um país ultraperiférico. “Em Zaporizhzhya temos uma central nuclear e estávamos preocupadas porque se explodisse queríamos estar o mais longe possível e foi assim que decidimos vir para Portugal”, explica Maryna.

Ao serem questionadas sobre a forma como se sentem nesta associação, ambas afirmam que ficaram “chocadas” com a bondade e solidariedade do povo português: “a situação na Ucrânia está caótica e é difícil ajudar. Quando chegámos aqui ficámos em choque. Como é que é possível as pessoas serem assim tão boas?”.

Da Moldávia para a Roménia, da Roménia para a Polónia e da Polónia para Portugal chegou Yliana. Parou para conversar connosco e contar-nos a sua história, mas a sua vontade de ir trabalhar assim que chegou à UAPT notava-se no seu olhar. É uma das 220 pessoas que chegou no último voo e os seus dias são agora passados a auxiliar quem ficou em território ucraniano, com especial atenção para a mãe e para o irmão. Deu-nos duas palavras e, com um sorriso na cara despediu-se, e foi a correr para dentro do armazém “contribuir com as suas forças físicas”.

Assim que Yliana se despediu chegou um autocarro, desta vez de Serpa. O motorista, que já tinha previamente um serviço para realizar em Lisboa, aproveitou para passar nas Olaias e descarregar uma tonelada de roupa, comida e cobertores que foram angariados ao longo da semana pelo município de Serpa. Foram cerca de 200 km que, segundo o mesmo, “seriam feitos de novo, sem pensar.”

Alevtina, Maryna, Tanya e Yliana encontraram em Portugal um refúgio, mas foi na associação Ukrainian Refugees que encontraram a segurança, a paz e a solidariedade que não pensavam receber. A guerra bateu-lhes à porta sem avisar e sem esperar, mas, como Andriy afirma: “ajuda saber que a Ucrânia não está sozinha. Nós não estamos sozinhos”.

Visite o site da Ukrainian Refugees e saiba como ajudar.

Fotografias fora de território português cedida pelos entrevistados

Outras fotografias por Ana Cristina Barros

Artigo revisto por Ana Sofia Cunha

AUTORIA

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Com 19 anos de vida, Ana alia a sua paixão por animais, fotografia e música ao mundo da comunicação. Sempre gostou de contar histórias, de escrever, de ler e ainda arranjava espaço para falar pelos cotovelos. Criativa, determinada e sempre disposta a ajudar o outro, a Ana vê no jornalismo o privilégio de poder conectar o mundo e as pessoas.

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É uma alfacinha de gema apaixonada pela sua cidade e, como qualquer outro aspirante a jornalista, com um gosto especial pela escrita e pela leitura. Com 20 anos, Carolina não gosta de planear o futuro nem de viver com as expectativas altas. Rege-se muito pela ideia de que se for para acontecer, acontece, no entanto, sente que é ao jornalismo e à comunicação que a sua vida se vai destinar.