Grande Entrevista e Reportagem

António Gonçalves – o 25 de abril na primeira pessoa

A 25 de abril de 2022 celebram-se os 48 anos da Revolução dos Cravos, momento em que o regime ditatorial foi deitado abaixo em Portugal, após 41 anos ininterruptos em vigor. 

À nossa geração, restam apenas os relatos de quem viveu de perto este período. António Gonçalves é um exemplo. À conversa com a ESCS Magazine, o ex-militar contou a história da grande revolução na primeira pessoa.

Apresente-se e fale-nos um bocadinho do seu percurso de vida. 

Chamo-me António Gonçalves e iniciei o meu serviço militar em janeiro de 1972, em Tavira. Em março fui colocado na Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde fiz a minha especialidade – carros de combate de reconhecimento Panhard. É um veículo de oito rodas – quatro em pneu normal e quatro em metal – e tem um canhão. 

Como furriel, de que tarefas estava encarregue? 

O posto de furriel é uma das funções pertencentes à categoria de sargento. Eu montava as peças e realizava as tarefas com a colaboração dos vários soldados que estavam a meu cargo. Então, o tenente encarregou-me de dar prémios a esses mesmos soldados. Isto é, dispensava serviços e fins-de-semana àqueles que desempenhavam um bom trabalho. 

Como era a vida em Portugal antes da revolução? E viver debaixo de um regime ditatorial?

Não têm noção de como era o fascismo… Havia uma pobreza extrema. Os salários não tinham nada a ver com aquilo que são hoje; eram baixíssimos. Era raro as pessoas terem luz ou água canalizada em casa, especialmente aqui na ilha da Madeira. A alimentação era terrível. As escolas recebiam, dos Estados Unidos, alimentos para distribuir pelas crianças. Então, para o lanche, consumíamos uma fatia de queijo e uma lata de leite condensado. Para a maioria dos miúdos, esta era a refeição do dia. 

Além disso, ninguém podia expressar as suas opiniões, porque um indivíduo que tentasse dizer mal do governo era preso imediatamente. Como sabem, na altura, havia a polícia do estado – a PIDE – e esta tinha imensos colaboradores, que eram denunciantes. Lembro-me de um rapaz de 18 anos, que, para evitar a guerra do Ultramar, elaborou um plano para emigrar. Fez tudo em segredo, mas, ainda assim, a PIDE descobriu as intenções do jovem na noite em que ia embarcar. Fiquei espantado e questionei-me: “Como é que ele foi apanhado?”. Hoje sei como: havia os chamados “bufos”, que eram pessoas banais, incluindo os nossos amigos, que estavam de olho em nós e prontos para nos denunciar. 

Fale sobre os momentos que antecederam a revolução. Como é que se preparam para a mesma?

Uns meses antes do 25 de abril, o meu comandante queria as viaturas operacionais e eu obedeci, sendo um miúdo verde, sem saber para quê. O dia a dia foi passando e algumas viaturas foram ficando operacionais. A uma dada altura, eu disse-lhe que havia uma viatura que não estava operacional e ele disse: “Ó, Gonçalves, pelo menos experimenta a fazer fogo”. E eu perguntei “O que é que se passa?”, porque vi a insistência dele. Ele autorizou-me a tirar peças de uma viatura que tinha sofrido um acidente e estava noutro bloco militar, em que não se podia tocar num parafuso, ou seja, ultrapassei as normas militares. Continuei a insistir, perguntando o que se passava. Foi aí que ele me transmitiu que era necessário fazer uma transformação, mas eu não percebi bem. Ele não teve uma abertura plena a dizer “vamos para uma revolução”, mas disse que que as coisas não estavam bem, falou do Ultramar. Aí já fiquei com o pé atrás, à madeirense. O meu pai era militar, e eu disse: “pai, estamos aqui a preparar qualquer coisa, vamos a Lisboa, vamos deitar o governo abaixo” – foi a expressão que utilizei, a nossa cultura política na altura era zero. E ele disse: “Tu ainda vais bater ao Tarrafal” – que eu nem sabia que era uma prisão dos políticos em Cabo Verde.

Nas vésperas do 25 de abril, o Alferes, que era meu superior direto, disse-me: “Isto está feio, vamos a Lisboa”. E eu respondi: “Conta comigo!” – não no espírito revolucionário, mas sim porque o meu irmão tinha morrido em Angola, três meses antes, e eu fiquei revoltado com o sistema. 

Na noite do 25 de abril, fomos convocados pelo comandante do esquadrão para uma reunião e aí já fomos elucidados do que era para fazer e até das nossas posições – qual era a viatura onde íamos ficar no Terreiro do Paço. Portanto íamos com conhecimento de causa, já os soldados nem por isso. Quando os fomos acordar, sensivelmente às 2h da manhã, o comandante do esquadrão foi ler o Movimento das Forças Armadas. Uma verdade que não é dita muitas vezes: fomos nós, os Milicianos, que dissemos Vamos a Lisboa acabar com o Ultramar. O nosso foco principal não foi a democracia, mas simpor um fim às guerras nas colónias – Guiné, Moçambique e Angola. 

Os soldados acordaram, vieram para a parada e há aquela célebre frase do Salgueiro Maia:

“Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!”

Salgueiro Maia

Não houve ninguém que não aderisse à ida para Lisboa! Dizem que fomos sem granadas, mas eu garanto que a minha viatura deitava um prédio abaixo.

No percurso houve comunicação na rádio para que as pessoas não saíssem de casa e os médicos fossem para os hospitais, porque previa-se que poderia haver vítimas. 

Os ministros reuniram-se no Ministério do Exército, no Terreiro do Paço. Quando viram a nossa coluna, pensaram que éramos defensores do regime, mas o Salgueiro Maia mandou apontar o canhão para a janela onde eles estavam. Aí eles ficaram surpresos, não sabiam que a nossa missão era derrubar o Governo, e não protegê-lo.

O Salgueiro Maia recebeu instruções do Otelo Saraiva de Carvalho, que ordenou que nos deslocássemos até ao Quartel do Carmo. Sem dúvida que a vitória está, em grande parte, nas mãos do povo: na nossa vinda para o quartel, vi milhares e milhares de pessoas na rua que nos apoiavam. Este apoio foi fundamental, porque nos deu a certeza de que iríamos vencer. 

O Salgueiro Maia tinha um papel preponderante: negociar com Marcello Caetano. Este não aceitou ser substituído pelo capitão e, por isso, sugeriu a permanência de um oficial general; só então, com o envolvimento do Spínola, é que ele aceitou entregar-se.

Mas antes disso, visto que ele não se rendia, a viatura onde eu estava forçou a entrada no quartel do Carmo, até que finalmente abriram o portão. Isto é o meu ponto de vista sobre o acontecimento. 

À espera de ordens para disparar sobre o portão do quartel da GNR. Fotografia de Alfredo da Cunha. Fonte: Público.
Fotografia do Largo do Carmo, em frente ao Quartel, de Mário Varela Gomes. Fonte: Museu do Aljube.

Consegue lembrar-se de algum episódio específico que tenha sido muito duro durante o combate? 

Quando saímos de Santarém íamos com a garantia de que todos os militares de Norte a Sul do país estavam de acordo com o que íamos fazer. Mas não foi isso que aconteceu. Quando chegámos ao Terreiro do Paço, veio uma primeira força para nos cercar, que estava na Cavalaria 7, na Ajuda. Para nossa felicidade, o comandante que trazia essa força, com carros idênticos ao meu, tinha sido nosso colega em Santarém. Então, como ele não sabia bem o que vinha fazer, o Salgueiro Maia, comandante de excelência que foi, negociou com ele, convencendo-o a juntar-se a nós. Depois vieram os carros de combate, aqueles de lagarta, e cercaram-nos. Pararam à minha frente. A certa altura aparece o comandante da região militar de Lisboa e ordena o Alferes Sottomayor a fazer fogo sobre nós, mas este recusou. Mas estávamos no Terreiro do Paço quando começaram a fazer fogo sobre nós. Aí o Salgueiro Maia mandou-me para dentro do carro e disse: “Atenção, sobe que nós protegemos”. E o Alferes que estava comigo dizia: “Morremos todos, mas ninguém sai daqui”. Salgueiro Maia nunca nos deu autorização para fazer fogo, ele só dizia: “Aguardem a minha autorização”. Nós não sabíamos o que poderia acontecer. Esta foi a fase mais crítica do dia da revolução.

Fotografia de Alfredo da Cunha. Fonte: Museu do Aljube.

Como se sentiu sabendo que o objetivo de derrubar o regime tinha sido finalmente alcançado?

Foi uma grande alegria! Quando o Marcello Caetano foi preso e entrou na chaimite, soubemos que a missão estava completa. Perante a vitória, as pessoas assaltaram os supermercados, para trazer vinho e carne fumada aos militares. Deram-nos de tudo – até dinheiro nos chegou às mãos. 

Era tanta a confusão que a nossa coluna não conseguia sair. Visto que o Salgueiro Maia necessitava que a população se desviasse, Francisco de Sousa Tavares posicionou-se em cima da guarita e, com um megafone, ordenou que a multidão se deslocasse até ao Rossio para festejar. 

Esta foi a tarde do dia 25 de abril. 

Militares a fazer o “V” de vitória. Fotografia cedida por António Gonçalves.

O que é a liberdade para si?

Hoje, dou imenso valor à liberdade porque antigamente não a tinha. No entanto, devo dizer que não estou completamente satisfeito. De facto, agora temos a liberdade para criticar o governo e os políticos. Mas isto será suficiente? 

Eu gostaria de ver um país mais livre, mas o estado social no qual se vive hoje não permite. Ainda há muita pobreza (está escondida, mas existe) e pessoas que vivem mal. Ao passo que o pobre permanece na miséria, o rico fica cada vez mais rico. Isso magoa-me…

Durante os 48 anos que passaram desde a revolução, os políticos não souberam aproveitar a iniciativa para fazer com que os cidadãos se sintam socialmente bem. Em adição à liberdade, peço igualdade entre as pessoas. Valeu a pena a revolução? Claro que sim! Mas eu esperava mais – o potencial do 25 de abril não foi aproveitado na sua plenitude.

A 10 de julho de 2003, o então presidente da República, Jorge Sampaio, condecorou António Gonçalves como Comendador da Ordem da Liberdade. Este foi o primeiro militar da coluna do Salgueiro Maia a ser condecorado, além do próprio Maia, num total de 244 militares. 

O 25 de abril foi instituído feriado um ano depois da revolução, com o nome “Dia de Portugal” e posteriormente renomeado “Dia da Liberdade”, em 1978.

Fonte da capa: cedida por António Gonçalves

Artigo revisto por Ana Sofia Cunha

AUTORIA

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Daniela nasceu nos Estados Unidos, mas cedo se mudou para a ilha da Madeira, onde foi criada. Embarcar para a cidade de Lisboa é um primeiro passo para conquistar o seu sonho de criança: ser uma renomada Jornalista. Ambiciona criar conteúdos para grandes revistas turísticas, porque, para além da escrita, a sua paixão é viajar. São os pequenos prazeres da vida que a movem, e deseja partilhar esse olhar único sobre a vida.

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Luísa Montez é redatora da ESCS Magazine desde novembro de 2020, tendo começado por escrever apenas para a secção de Moda e Lifestyle. Após o sucesso do seu artigo escrito, excecionalmente, para a secção de Grande Entrevista e Reportagem, decidiu aceitar o convite e fazer parte da mesma. Antes de entrar na ESCS já sabia que queria pertencer à revista, pois a escrita é um dos seus pontos fortes.