Opinião

Deficientes Sociais

Era quarta-feira e chovia a potes. Cheguei ao supermercado e o parque de estacionamento não tinha mais do que três carros. Fiz as minhas compras e, quando me dirigia para o carro, vi um veículo chegar e estacionar, mesmo à entrada do dito estabelecimento, num lugar destinado a pessoas deficientes. Parei um pouco e esperei que o automobilista saísse. E saiu, como qualquer outra pessoa sem nenhum tipo de deficiência aparente. Não quis cometer um julgamento precipitado e passei perto da viatura para ver se esta possuía algum dístico que indicasse que o condutor era portador de algum tipo de deficiência. Não existia nenhum dístico, o automobilista não era idoso, não tinha nenhuma criança e muito menos estava grávido. Cheguei à simples conclusão de que ele tinha uma deficiência mental muito comum no povo português, mas que não dá direito a dístico. Chama-se estupidez.

Sempre foi algo que me enervou: chico-espertos. E enerva-me especialmente quando essas pessoas acham que são mais do que as outras e perturbam as regras destinadas a facilitar a vida a quem mais necessita. Aqueles lugares muitas vezes não são utilizados, especialmente em pequenas vilas como a minha, mas e daí? Isso dá-nos o direito de fazermos o que queremos, nem que seja com aquela desculpa do “Mas foi só por dois minutos”? Com isto eu não quero falar dos idiotas que estacionam nos lugares para deficientes. Quero, sim, falar na falta de ética e de moral que tem sido um facto cada vez mais notório.

Miguel Araújo, numa música intitulada “Fizz de Limão”, de carácter interventivo, canta “A nossa estética perdeu-se no vazio // A nossa ética anda presa por um fio”. E eu não podia concordar mais. Hoje em dia, os valores morais estão em decadência. Vejo jovens a não respeitar pessoas idosas, automobilistas quase diariamente à pancada, indivíduos incapazes de ceder um lugar a um idoso no metro ou no autocarro. Hoje em dia não se rouba porque é errado roubar. Não se rouba porque existe o medo de se ser apanhado e o medo de se sofrer uma represália. As pessoas não fazem o certo pelo certo. Fazem o certo com medo das consequências do errado, facto esse que é estranho num país essencialmente cristão, no qual, se bem me lembro, o cristianismo se rege por princípios de entreajuda. Tendo em conta esses mesmos princípios, também é estranho num país turístico, no qual eu vejo uma simpatia hipócrita, como se se julgasse o turista por ter dinheiro para viajar e o funcionário, coitado, tem de estar ali a trabalhar. Que pena estar a trabalhar num país em que 13,2% da população está desempregada…

Eu venho da terrinha e foi um pequeno choque a que me submeti quando cheguei à capital, há cerca de um ano e meio. A vida na cidade é algo muito mais individualizado, mas isso não impede que haja entreajuda. Não impede que se ajude um mendigo caído a levantar-se do chão, não impede que ajudemos um turista a comprar o bilhete no metro, que deixemos a pessoa passar à nossa frente na caixa quando ela só tem um produto e nós temos o carrinho cheio. É raro em Lisboa ouvir-se um “com licença” ou um “obrigado”. Mas pior do que tudo isto é que o maior decréscimo de ética e educação vem dos jovens. Desses, nos quais me incluo, que daqui a uns anos mandarão neste país. Nesses, que daqui a uns anos desempenharão as funções que fazem mover um país.

Preocupa-me aquilo que vejo. Assusta-me aquilo que vejo. Preocupa-me que crianças e adolescentes convivam cada vez menos, e que o pouco que convivem seja através de meios tecnológicos. A capacidade de relacionamento, tão própria e intrínseca ao ser humano, começa a perder-se a pouco e pouco. E o que é o homem se não souber comunicar? Como poder ser ele mais prestável ou encarnar melhor os conceitos de entreajuda se cada vez comunica menos cara a cara? Tenho medo do que aí vem. Mas, acima de tudo, tenho saudades de um “bom dia”, de um “com licença” ou de um “obrigado”.

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