Grande Entrevista e Reportagem

Dia Mundial do Veganismo. Mais do que uma dieta da moda

As imagens que se seguem podem chocar os espetadores mais sensíveis. Os gritos estridentes e desesperados denunciam aquilo que se verá de seguida. Animais visivelmente stressados em espaços sobrelotados são arrastados violentamente, pontapeados e espancados. O trajeto para a morte inevitável é doloroso e sangrento. Esta é a história de uma morte anunciada e quase todos já a vimos num vídeo nas redes sociais ou num dos vários documentários sobre o lado obscuro da indústria agropecuária. Ninguém fica indiferente, mas são poucos os que decidem dar o próximo passo e mudar os seus hábitos de consumo.

Para Sara Guerra, este foi apenas o ponto de partida para se começar a questionar em relação àquilo que punha no prato. “Lembro-me de pensar: como é que eu nunca tentei perceber como é que me chega este pedaço de carne? Ou pelo que as vacas têm de passar para que nós possamos ter leite?!”. A curiosidade levou-a a ler e a investigar cada vez mais sobre o assunto e rapidamente percebeu que esta era apenas a ponta do iceberg. “À medida que fui lendo outro tipo de informação e complementava àquilo que tinha visto, mais assustada ficava e mais vontade tinha de mudar a forma como estava a olhar para aquilo que consumia”. Sara Guerra é natural de Aveiro, investigadora na área da saúde e vegan. Conta com cerca de 18 mil seguidores na sua conta de Instagram, “Vegan Portuguesa”, onde partilha receitas e informações, desmistifica temas associados ao veganismo e fala do seu processo de transição para uma dieta 100% vegetal. Apesar disso, não se considera uma influencer. “Não sei se será a palavra mais indicada, mas acho que posso ter um contributo relevante junto das pessoas que acompanham a página, promovendo um espírito crítico, reflexão e incentivando também a mudarem alguns dos seus comportamentos”.

Mas, afinal, o que é o veganismo?

Em Portugal, cerca de 1,2% da população é vegetariana e 0,6% vegan (dados de 2017 da Nielsen). Há quem diga que é a dieta da moda, outros que é uma escolha consciente. Na verdade, o veganismo “é um estilo de vida que inclui várias componentes que vão para além da alimentação”, explica a nutricionista Márcia Gonçalves. Em termos práticos, o veganismo procura excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra animais, seja para a alimentação, para o vestuário ou para qualquer outra finalidade.

No que diz respeito à alimentação inclui-se aqui a denominada dieta vegetariana estrita, que “pressupõe a exclusão de todos os alimentos de origem animal: a carne, o pescado, os ovos, os lácteos e o mel”, esclarece.

Se perguntarmos à Sara por que razão optou por deixar de consumir produtos animais, a resposta é simples: pelos animais. Mas as razões para adotar o veganismo como um estilo de vida são variadas. Além da preocupação com o bem-estar animal, há também a questão da sustentabilidade, visto que evitar o consumo de carne e de lacticínios pode reduzir a nossa pegada ecológica em quase três quartos. Há quem ache mais saudável uma dieta 100% vegetal e há até quem o faça por motivações religiosas, éticas ou morais.

Mas a transição para um regime alimentar 100% vegetal nem sempre é um mar de rosas. Quem percorre o feed super organizado e cheio de pratos coloridos do Instagram da autora “Vegan Portuguesa”, Sara Guerra, não imagina que no início comer tofu e seitan era, para ela, uma verdadeira maçada. “Naquela altura, eu não tinha muita informação e, como deixei logo a carne, aventurei-me no mundo do tofu e do seitan. Foi uma fase chata, porque comer é um prazer e eu pensava: Lá vou eu cozinhar este tofu e este seitan e isto não sabe a nada – é horrível. Acabava por me desmotivar um bocadinho”, confessa.

Por outro lado, a falta de compreensão, os comentários jocosos e as críticas por parte das pessoas mais próximas nem sempre eram fáceis de aceitar. Foi ao criar a sua conta de Instagram que descobriu uma forma de poder documentar as dificuldades da sua transição, informações sobre aquilo que ia lendo e um espaço de partilha onde podia encontrar pessoas com o mesmo mindset. “Foi importante seguir outras pessoas que pensavam da mesma forma que eu e sentir que não estava sozinha. Na altura, era talvez a única na família a fazer este tipo de transição e precisava de falar com alguém que me percebesse, com quem eu pudesse partilhar alguns desabafos e conhecer outras pessoas que pensassem da mesma forma que eu”.

O processo de transição foi feito de forma “gradual e consciente”. Sara deixou de imediato a carne e depois o leite, a manteiga e o fiambre. Dois a três meses depois, deixou o peixe e os ovos. A última coisa a deixar foi o queijo, por ser o que apreciava mais, mas afirma orgulhosamente que também conseguiu abdicar dele e encontrar substitutos vegetais.

Já lá vão quatro anos desde que se tornou vegan e admite nunca ter sentido falta de voltar a comer produtos animais. Para quem quer iniciar a transição para uma alimentação 100% vegetal, deixa alguns conselhos: primeiro, é importante analisar as motivações, “perceber por que quero fazer isto e depois identificar quais são os obstáculos que poderão aparecer no caminho, para os antecipar”. A partir daí, é procurar informação, começar a ler receitas, veganizar os pratos que mais gostamos e procurar perceber o que incluir no prato para o tornar rico do ponto de vista nutricional.

“Existe todo um mundo de novos produtos nesta dieta, tantas coisas que podemos usar para combinar e fazer pratos diferentes. É ser criativo, procurar ajuda e levar as coisas com bom ânimo. Nunca valorizar comentários que não sejam positivos”, refere a autora de “Vegan Portuguesa”

Em qualquer mudança alimentar é importante haver uma orientação profissional e com o veganismo não é diferente. Há nutrientes que precisam de ser assegurados e, por vezes, suplementados, para que a nossa saúde seja preservada. “Nunca senti que me faltasse nada. A minha transição foi acompanhada, informei o meu médico de família, a equipa de enfermagem e, mais tarde, fui também acompanhada por uma nutricionista”.

A nutricionista Márcia Gonçalves é quem acompanha Sara no seu regime alimentar, e alerta para as vantagens de consultar um especialista: “Acho que é pertinente consultar um nutricionista para várias questões. Por exemplo, eu sigo alguns estudantes que têm dificuldades económicas e às vezes o consultar um nutricionista pode ajudar a definir as prioridades na alimentação, reduzir o custo associado à gestão e à compra dos alimentos ou mesmo para desmistificar alguns mitos em relação à alimentação”.
E se na generalidade dos cenários consultar um nutricionista é algo importante, nos casos em que há necessidades aumentadas – como em crianças, adolescentes, grávidas, mulheres na fase de lactação e idosos – torna-se mesmo algo indispensável.

Neste artigo, resolvemos desmistificar alguns dos mitos relacionados à dieta vegetariana estrita (incluída no veganismo) e responder a algumas das questões mais feitas sobre este regime alimentar.

Desmistificando o veganismo com a nutricionista Márcia Gonçalves

Márcia Gonçalves, nutricionista e autora do blog Compassionate Cuisine

É mais caro adotar uma dieta vegetariana estrita/plant-based?

À partida, não. Se as pessoas escolherem alimentos normais que estão dentro da tradição alimentar portuguesa: por exemplo, às refeições preferir as leguminosas (grão-de-bico, feijão, favas, ervilhas, etc.). Mesmo as alternativas vegetais proteicas como o tofu e a seitan atualmente têm preços cada vez mais acessíveis e, felizmente, as alternativas ao leite e aos iogurtes também já são mais económicas -e é possível comprar de marca branca, sem adição de açúcar.

No fundo, se procurarmos alimentos normais e evitarmos alimentos processados, como os hambúrgueres a imitar carne, acaba por ser uma alimentação bastante acessível e não tem de ser, de todo, mais cara.

Os vegetarianos (incluindo veganos) têm maior risco de vir a ter um AVC?

Esta conclusão tinha sido retirada de um estudo epidemiológico da corte EPIX-Oxford e aquilo que se constatou foi que quem seguia um padrão alimentar vegan tinha um maior risco de ter AVC hemorrágico. Outro outcome interessante deste artigo foi que quem seguia um padrão alimentar vegan tinha uma diminuição acentuada do risco de morte por enfarte isquémico – algo que já tinha sido reportado noutros estudos.

O artigo pressupõe que há aqui algumas relações entre a falta de nutrientes e o aumento do risco de vir a ter um AVC. Os estudos epidemiológicos são propensos a erros sistemáticos dado o recurso a questionários de frequência alimentar (reportados pelos próprios participantes) e possíveis mudanças nos padrões alimentares dos participantes. É um único estudo observacional e uma metodologia da qual não podemos tirar uma causa-efeito. As pessoas não devem ver aqui uma razão para deixarem de ser vegetarianas ou veganas.

Ser vegan é mais benéfico para a saúde?

Ser vegan, por si só, não é mais benéfico. Por exemplo, as batatas fritas são vegan e o seu consumo deve ser regrado.
Pode ser interessante se a pessoa através desse padrão alimentar conseguir uma maior saúde de uma forma geral. O que se vê na maior parte dos estudos é que quem é vegetariano também altera o seu estilo de vida como um todo, ou seja, fica mais alerta para a alimentação, mas depois também expande esta preocupação para outros aspetos da sua vida.  

Uma alimentação omnívora desde que bem planeada e com um consumo abundante de hortofrutícolas também pode ser muito saudável, assim como uma dieta vegetariana estrita.

Há risco de não se conseguir obter proteína com a exclusão da carne?

A proteína não é um risco na dieta vegetariana estrita desde que o indivíduo consuma os alimentos proteicos de origem vegetal, como, por exemplo, as leguminosas – que devem estar presentes nas refeições principais -, a soja, os frutos oleaginosos (frutos secos) e também os cereais. No fundo, tentar variar dentro destas opções para conseguirmos obter uma ingestão não só adequada em termos de quantidade de proteína, mas também em termos de qualidade proteica, atingindo as recomendações de todos os aminoácidos.
Desde que a alimentação vegan seja variada e que inclua leguminosas, é muito fácil atingir as necessidades proteicas.

Quais são os principais cuidados a ter a nível nutricional?

A exclusão de todos os alimentos de origem animal vai levar a uma menor ingestão da vitamina B12, que apenas está presente neste tipo de alimentos. Nesse caso, tem de haver uma monitorização dos níveis e avaliar a pertinência de fazer a suplementação.

Outro nutriente importante é o cálcio. Ao evitarmos a ingestão de lácteos, temos de fazer a reposição com outros alimentos, como as bebidas vegetais, as alternativas ao iogurte (que são fortificadas em cálcio). Além disso, podemos consumir hortaliças de folha verde escura (brócolos, nabiças, couve galega, couve portuguesa).

O ómega-3 é um ácido gordo que está presente, por exemplo, nas sementes de linhaça, de chia e de cânhamo, e nas nozes.Nas fases de vida em que é mais difícil atingir quantidades adequadas destes ácidos gordos, é adequado fazer a suplementação com óleo de microalgas.

Embora esteja presente de forma bastante significativa nos alimentos de origem vegetal, a absorção do ferro é mais baixa, porque as próprias matrizes dos alimentos de origem vegetal têm alguns fatores que vão impedir esta absorção. Por isso, para além de diariamente ser necessário incluir alimentos ricos em ferro como as leguminosas e os frutos oleaginosos (frutos secos), é também importante incluir fatores fortificadores dessa ação, como a vitamina C. Este é mais um nutriente que é preciso monitorizar, principalmente nas crianças e nas mulheres em idade fértil.

Relativamente ao zinco, passa-se um bocadinho o mesmo que no ferro, no que diz respeito à dificuldade de absorção. De uma forma geral, desde que sejam incluídos alimentos como os cereais integrais – em particular a aveia que é bastante rica em zinco -, as leguminosas e os frutos oleaginosos, é fácil atingir as recomendações deste nutriente.

Quanto ao iodo, um cuidado muito simples para quem é vegano seria o uso de sal iodado, em vez do sal marinho. Nós não temos um consumo tradicional de algas, mas são outro alimento riquíssimo em iodo.

No pequeno-almoço e no lanche, tentar incluir fruta, cereais integrais (flocos de aveia, pão de mistura ou de centeio) conciliados com frutos oleaginosos (frutos secos) e bebidas vegetais fortificadas em cálcio. Nas refeições principais, tentar incluir as leguminosas, um acompanhamento de cereais e ter sempre um acompanhamento de legumes – no prato e na sopa – ricos em carotenos (como a cenoura) e hortaliças. Na preparação dos alimentos, tentar privilegiar o uso do azeite por ser uma gordura monoinsaturada.

Fonte: Veggie Kit – Associação Vegetariana Portuguesa

Revisto por Adriana Alves

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