Era uma vez
Versão em forma de tributo de uma Hollywood em transição da sua fase clássica para uma nova era mais escura. O “nono” de Tarantino não desilude. O fim é um assombro grande e eloquente.
A expectativa em Cannes era a confirmação de um crescendo de antecipação para com a nova obra de Quentin Tarantino. Era uma vez… em Hollywood, promessa há muito enunciada de um cruzamento entre os crimes da trupe Manson (talvez o mais infame dos serial killers americanos, ele próprio figura transcendental do final da década de 1960: os loucos anos dos Beatles, da revolução hippie que Manson ajudou a destruir ou a ida do homem à lua) e a “ficção” de Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), ator de westerns caído no esquecimento. As reações na La Croisette foram positivas, confirmando a antecipação que a nona obra do americano provocou pela imprensa internacional e circuitos cinéfilos pelo mundo fora. Apesar dos elogios, o filme não foi visto pelos exigentes críticos com uma aclamação unânime ou confirmação de uma obra-prima que era esperada por muitos.
O essencial a reter é que Tarantino presta uma bela homenagem ao movimento pop. Nas incansáveis referências às músicas dos Mamas & The Papas ou Paul Revere & The Raiders ou na construção “descuidada” dos cenários, transmitindo a atmosfera da época. Com as referências musicais, percebemos rapidamente o paralelismo com Jackie Brown, obra pouco reconhecida de Tarantino, resgatadora de Pam Grier.
O elenco conta com nomes como o já referido DiCaprio; Brad Pitt, na pele do duplo Cliff Booth (papel que lhe valeu o Óscar de melhor ator secundário); Margot Robbie, impecável no papel de Sharon Tate; Emile Hirsch; Dakota Fanning ou o grande Al Pacino. Um Desfile de talentos feito de forma trabalhada e cuidada.
Não se espere do filme um desenrolar de cenas sádicas de violência habituais na filmografia de Tarantino. Exemplo perfeito dessa recusa é a cena em que Cliff Booth no Spahn Ranch nos dá uma antecipação de uma sequência de tórrida violência que se fica somente pelo crescendo, deixando o espetador com “água na boca”. Contudo, essa violência é nos reservada apenas para a parte final do filme.
Podemos ver o filme como uma prenda a Hollywood. Mas, acima de tudo, ele é uma desconstrução da Hollywood clássica. Rick Dalton é a encarnação de uma anunciada decadência que daria lugar a uma nova forma de fazer cinema. Não será exagerado ver ali referências de Bonnie e Clyde, de Arthur Penn, ou de Easy Rider, de Dennis Hopper, marcos que enunciaram a nova geração: aquela dos Coppola’s, Scorsese’s ou Spielberg’s. Uma grande aula de narrativa com várias estórias que demonstram vários pontos por explorar, mas que são propositadamente “esquecidos”, dando liberdade ao espectador de criar a sua própria perceção do que se passa no mundo de Era uma vez…
O final é lindo e assombroso. É uma versão delirante imbuída na grande eloquência das sequências das mortes da “trupe” de Manson. O realizador de Cães Danados guarda para o fim toda a violência desenfreada que caracteriza a sua cinematografia. Vem-nos à memória À Prova de Morte, onde “o caçador se torna a presa”. Tarantino reescreve a História, mas, acima de tudo, confirma um grande filme, fechado “em chave de ouro” nos seus últimos 20 minutos.
Artigo corrigido por Adriana Alves
Fonte da imagem de capa: Funchal Notícias
AUTORIA
Olá, sou o Luís, tenho 27 anos e nasci em Cascais. Vivo desde, quase sempre, em Sintra e sinto-me um Sintrense de gema. Adoro cinema - bem, adorar não é a palavra adequada, venerar parece-me um adjetivo mais justo - e sou também obcecado por política e relações internacionais. Gosto também muito de desporto.