Editorias, Opinião

Erros honestos = Políticos felizes

Este artigo é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

Dizer que o formato eleitoral norte-americano é confuso é ser-se eufemístico. É uma nauseante mixórdia de votações públicas e/ou privadas capaz de dar uma valente dor de cabeça ao mais arguto dos comentadores políticos. Longe de mim culpar os media portugueses pela falta de conhecimento sobre o assunto – os profissionais desta minha área têm preocupações de maior, como a vaca que matou a tia da dona à paulada em Valongo dos Azeites, ou a demonstração irrefutável de como o Sócrates é o Anticristo. Não deixa de me causar alguma comichão quando leio notícias como a que foi escrita pela jornalista Helena Tecedeiro para o Diário de Notícias. E cito um excerto: “(…) também nas primárias, o segredo para obter a nomeação é amealhar o maior número de delegados. E aí, a vantagem de Hillary Clinton sobre Bernie Sanders é inegável do lado democrata: a ex-primeira-dama tem 1221 contra os 571 do senador. Para obter a nomeação, são necessários 2383.”

O problema com esta frase é que está objetivamente errada. Sim, a vantagem da Clinton é inegável, mas o número de delegados apontado é falacioso. Por ignorância ou omissão. Os números corretos, neste dia 13 de março, aquando da minha feitura deste artigo, são os seguintes: 774 delegados comprometidos da Hillary contra 553 do Bernie Sanders. Olhando assim, trata-se de uma distância bem mais razoável, não concordam?

É importante, para percebermos o erro da Helena Tecedeiro, entendermos a diferença entre delegados comprometidos e superdelegados. As primárias no Partido Democrata dividem-se em última instância na soma entre dois grandes blocos. Os delegados comprometidos são eleitos por um sufrágio popular, tal como acontece nas eleições portuguesas, que acontece em todos os 50 estados (acrescentando alguns territórios extracontinentais). O número de delegados “disponível” para ser ganho em cada estado depende maioritariamente do número de habitantes do estado em questão. Por isso é que estados do interior americano, como o Wyoming ou a Dakota do Sul, não resultam na eleição de um grande número de delegados, apesar da sua dimensão geográfica.

Temos portanto os delegados comprometidos, fruto do voto do povo em cada estado, distribuídos proporcionalmente consoante o resultado eleitoral. Há, no entanto, um já referido segundo bloco das primárias do Partido Democrata: os superdelegados. Estes são históricos ou figuras proeminentes do partido (pensem analogamente em indivíduos como Mário Soares, ou Manuel Alegre) livres de apoiar qualquer candidato. Apenas na convenção final das primárias, apoiarão irrevogavelmente um candidato da sua escolha, estando libertos nos entretantos para fazerem um flip-flop mental ou mediático. Ou seja, estes são tudo menos comprometidos. Neste artigo do DN há uma soma sem distinção entre os delegados já conseguidos, e cujo voto final é obrigado pelo povo, e os superdelegados, que são uma espécie de gelatina política.

Mas perguntam vocês e bem: “Quem obriga estes dinossauros partidários a alterar o seu apoio pré-declarado?” Parafraseando um artigo da Vox, nunca na história da América os superdelegados permutaram o candidato escolhido pelo povo. Se um dos candidatos, seja qual seja, tiver um maior número de delegados comprometidos, existirá enormíssima pressão social e política bem justificada para não ser subvertida a vontade popular.

Somando todos estes fatores chego à seguinte conclusão: a equiparação dos delegados comprometidos aos superdelegados serve a exclusiva função de propaganda mediática, tentando afirmar uma vertiginosa distância entre Bernie Sanders e Hillary Clinton. Tudo em nome da inércia sufragística, é claro.

Não acredito que a jornalista do DN tenha tido más intenções. Poderia listar dezenas de outros exemplos portugueses ou mesmo internacionais. Já no que toca a estes últimos, as más intenções passam para o reino do plausível, ou, quiçá, do provável.

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