Nomadland – Uma sobrevivência digna de Óscar
Já lá vai quase um mês desde que os olhares dos cinéfilos ao redor do globo não se desviavam da Union Station, a estação central de Los Angeles. De entre os mais de 100 nomeados, apenas 23 foram galardoados com os prémios dos melhores do cinema pela Academia de Hollywood. Nesta 93ª tão aguardada edição dos Óscares, Mank contou com o maior número de nomeações, Anthony Hopkins ganhou o prémio de Melhor Ator e Nomadland – Sobreviver na América foi o grande vencedor da noite, tendo conquistado ainda os prémios de Melhor Realização e Melhor Atriz.
Nomadland – Sobreviver na América, realizado pela chinesa Chlóe Zhao – que fez história ao ser a segunda mulher a conquistar o Óscar de Melhor Realizadora ao longo de 93 edições –, conta com um argumento que teve como ponto de partida o livro Nomadland, da jornalista Jessica Bruder, e ostenta um subtítulo que evoca, sem tirar nem pôr, a “sobrevivência”.
Confesso que não sabia muito mais do que isto quando me propus, precisamente, a escrever uma crítica a este filme. De boca em boca e no assunto da ordem do dia, as várias opiniões de que fui tomando nota intersetavam-se na ávida recomendação que destacavam. E se ter ganhado o Óscar de Melhor Filme não fosse suficientemente esclarecedor da sua magnificência, foi ao ziguezaguear entre críticas que consideravam um crime não assistir a tal “obra-prima” que decidi aferir se esta era, de facto, digna de tamanha atenção. Isto, claro, nem que fosse para mais tarde gozar em discordar. Mas descansem: ao fim de 1h45 de paisagens de cortar a respiração, feliz asseguro que não foi o caso.
O drama acompanha uma viragem marcante na vida de Fern (Frances McDormand), uma mulher na casa dos 60 anos que, depois de perder tudo na Grande Recessão, embarca numa viagem sobre rodas pelo Oeste americano. Uma longa-metragem que nos deslumbra com as paisagens mais magníficas e que nos transporta para uma realidade subtilmente assinalada pelo sofrimento da perda.
Falemos da complexidade que compõe a natureza da peça. Todas as expressões que possam roçar o limiar do poético e que tão bem se encaixam na caracterização do enredo possuem mais do que uma função meramente decorativa por entre linhas e muito menos uma carga superficial a elas associada. Ainda que em cenas o disfarce, Nomadland é composto por camadas profundas e indissociáveis entre si. No fundo, o ato de desvendar o longínquo sentimento por detrás da sumptuosa realização de Zhao depende do ângulo com que o espetador escolhe assistir.
No plano temático, creio ser fundamental não reduzir as personagens a meros espetadores resignados com o que a vida lhes proporcionou. Muito pelo contrário: estas pessoas escolheram experienciar uma vida nómada caracterizada pelo desapego e levada a cabo por um modo de vida precário. Ainda que tal escolha tenha sido realizada no conturbado período da Grande Recessão, importa não relativizar, ainda assim, o puro ato de escolher seguir viagem, levando a casa às costas.
Após a morte do marido, de quem cuidou até ao último suspiro, Fern manteve-se em Empire, cidade em que viveram toda a vida. Agora sem a sua presença e sem qualquer forma de sustentar a casa onde moravam, a, então, viúva investe todo o seu tempo e capital a melhorar a carrinha onde passaria, por entre estacionamentos, a morar. E, assim, acompanhadas por música clássica, as cenas do grande ecrã expõem uma realidade em que, uma vez mais, a fuga surge como solução primordial face a situações que possam vir a duplicar a sua dor.
Fern é uma personagem completamente fascinante, o que muito se deve à brilhante prestação de Frances McDormand digna do Óscar de Melhor Atriz nesta 93ª edição. A calma com que suporta a solidão que nitidamente a corrói no interior; a boa-disposição e subtil ironia com que encara cada tarefa que lhe é imposta; e a atenção que dedica aos que a rodeiam constituem um retrato de alguém cuja postura para com a vida ultrapassa a mera existência ou, ainda, a mísera busca por qualquer tipo de prazer momentâneo. A meu ver, a força de vontade que demonstra ao continuar a viver na sua caravana é, em certo ponto, surreal: isto porque no meio da dor, da saudade e do arrependimento, Fern não faz intenções de desistir. E essa é, de facto, uma das caraterísticas que mais fornece ao filme o caráter labirinticamente simplista que o individualiza.
Entre as várias personagens que com ela se cruzam, destaco a errática passagem de Dave, um homem maduro cujo desejo, à semelhança do de Fern, incide sobre a vivência nómada moderna: também ele viu na estrada o antídoto para a angústia que o consumia. E face à saudade e ao arrependimento que sentia por não ter sido uma figura paterna presente, renuncia à estável vivência debaixo de um teto. A carência que ambos sentem interseta-se, então, no carinho que demonstram, ainda que de formas diferentes, um pelo outro. Mas Fern não se deixa levar e foge, uma vez mais, sem sequer se despedir. Ainda assim, a viagem a que se entrega ultrapassa a simples contagem de milhas: exprime uma face catártica aquando do seu destino, quer para a própria personagem, quer para o público que, ao longo do filme, começa a entender a profunda composição do seu ser.
Num panorama geral e sem muito mais desvendar, digo que não fiquei, de todo, desiludida. Muito pelo contrário. Em poucas palavras, a visão que Chlóe Zhao fez transparecer ao longo de quase duas horas é absolutamente brilhante. Nomadland – Sobreviver na América é um filme leve, mas que não deve ser encarado como tal. Não primazia o humor, nem apresenta cenários fantasiosos, mas transporta uma carga sentimental indiscutível. E, por detrás de tons escuros e neutros do início ao fim, exprime, para os que por este procurarem, um pingo de cor.
Artigo redigido por Inês Galrito
Artigo revisto por Miguel Bravo Morais
Fonte da imagem de destaque: Cinecartaz – Público
AUTORIA
Apaixonada pela área da comunicação. Numa relação com o bichinho do jornalismo desde que se lembra. Criativa, curiosa, dedicada e resiliente. Frequentou o curso de Ciências e Tecnologias no secundário, mas cedo percebeu que não era o match perfeito. Romântica incurável em full time, cantora de duche, chef e federada em mergulho no sofá nos tempos livres. Sonha em viajar pelo mundo, e ambiciona dar voz a quem dela carece.