Opinião

? – O jardim dos caminhos que não têm saída

Há um grande equívoco na Humanidade. Quando ela se ergueu em duas patas e inventou o fogo e a lança, é possível, e provável, que tenha achado que, eventualmente, um dia resolveria todos os dilemas do mundo: desde os principais, como a criação do mundo ou a existência de Deus, até aos problemas de menor importância, como por que razão o corpo humano conduz a corrente elétrica. Ainda assim, descobriram-se algumas coisas importantes: não estamos no centro do universo, nem sequer no centro do Sistema Solar. Permanecemos, porém, na crença de que estamos no centro da Terra, no sentido em que dominamos tecnicamente os recursos ao nosso dispor, bem como os outros animais. Esta crença é uma extensão da crença inicial de que, eventualmente, todos os dilemas seriam solucionados, todas as perguntas seriam respondidas. O antropocentrismo que coloca o Homem como um Deus-eventual, capaz de responder a todos os desafios e todas as perguntas é, paradoxalmente, uma infantilidade, no sentido em que não é sensato nem realista achar-se que essa empreitada alguma vez será possível. E esse reconhecimento de humildade perante a imensidão do conhecimento possível é um primeiro passo no sentido de se ser, a cada passo, mais humano. No domínio da abstração científica, este é o primeiro reconhecimento necessário: o reconhecimento de que há perguntas que não podem ser respondidas, porque não existe uma resposta.

O ser humano não é, claro está, um animal puramente racional. Ao longo da História, tem vindo a desenvolver e a manifestar, sob a forma de afetos, laços matrimoniais, pinturas, poemas, etc., a sua inteligência emocional. Este conhecimento, por não ser puramente técnico, acaba por ser mais difícil de identificar e, por consequência, de valorizar. Todavia, tanto num caso como noutro, o denominador comum é o desejo de conhecer. Esse desejo de conhecer que é em primeira instância uma vontade puramente individual e egocêntrica acaba por, também no campo emocional, se virar contra nós. É um exercício de tremenda infantilidade, teimosia e falta de sensatez, em relações emocionais, acharmos que nos é devida uma explicação total e pormenorizada, absoluta e definitiva. No domínio do concretismo emocional, este é, assim, o segundo reconhecimento necessário: o reconhecimento de que há perguntas que não podem ser respondidas porque não podem, em primeiro lugar, ser perguntadas.

O dilema do Homem contra Deus, que é ele próprio, resulta desta ânsia de saber a cada momento mais do que sabia. Saber mais, e querer saber mais, efetivamente distingue-nos de outras espécies que não sabem, mas não têm consciência disso. A consciência é, então, e afinal, o que nos distingue: não a capacidade de memorizar ou de responder a dilemas do universo ou do espírito. E é também a consciência dos nossos limites e o exercício dela, às vezes sensato outras vezes sofrido, que nos caracteriza. Não somos o que conhecemos, mas aquilo que somos capazes de abdicar conhecer. E a razão pode ser meramente técnica ou física, no que diz respeito a problemas do universo. O mesmo não acontece no que respeita às questões do espírito. Se há um propósito, e vivemos tempos em que procurar um é particularmente delicado, esse acabará, talvez, por estar nessa abdicação de perguntar, quando não estamos no direito de perguntar, tampouco no direito de nos ser concedida uma resposta. Mesmo que ela exista. Aliás, sobretudo se ela existir e estiver ao alcance de uma simples pergunta. O sentido último da Humanidade é entender, para mal da sua frustração e sofrimento, que não está em saber tudo esse sentido último, e que essa curiosidade não é sempre legítima. Mesmo que satisfaça o bem comum. Se era importante pensar para nos distinguirmos dos animais, é hoje importante sentir para nos distinguirmos dos computadores. Talvez esta questão, na realidade, sempre tenha ocupado a mente de pensadores ao longo da História. Mas talvez nunca, como hoje, foi tão importante escolher as perguntas que vale a pena fazer e permanecer em silêncio perante o outro se isso lhe causar uma moléstia ou incómodo desnecessário.

O silêncio como abdicação do saber em prol da paz é a grande conclusão deste século, ainda que por muitos não tenha sido compreendida. Se em tempos foi suficiente para nós termos prazer e a simples consciência dele, hoje, com o prazer demasiado acessível e incentivado, é necessária essa abdicação, para que, na história de um país ou de uma família, fique pedra sobre pedra. Essa desistência, que sabemos doer a quem pensa a existência, é hoje, ainda mais, a derradeira tomada de consciência, aquela definidora da nossa Humanidade ou do que dela restará. O outro como centro, não necessariamente por paixão ou amor, como outrora se pensou: o outro como centro, por dignidade ao ser, porque, se somos realmente humanos, não pode ser de outra maneira. O Homem que se concebeu como Deus tem de morrer, não só nem primeiramente porque é masculino, mas porque se concebeu como um ser capaz de satisfazer todas as suas necessidades e, pior, no direito disso. É urgente que o Homem abandone a corrida aos céus e os céus que talvez julgue ainda habitar, e trazer consigo o corpo de si próprio, incorporando todos os deuses que para si criou para legitimar esta ascensão. Não. É do intermédio entre o animal e Deus que o Homem se fez e estarei sempre pronto para o relembrar disso, não como Deus, mas como outro igual. Que não nos iludamos, tampouco fujamos para a frente carregando a nossa culpa e o nosso desespero no beco sem retorno que assiste à condição de ser contemporâneo. O destino natural do Homem é matar Deus, sim, não para o substituir, mas para de seguida regressar ao seu lugar na natureza, de onde é natural. Não há Deus, porque não há infinitas perguntas. Há muitas coisas pelas quais vale a pena morrer. E talvez a dúvida seja a mais importante delas. A pergunta não vale mais do que a paz em momento nenhum da história, muito menos neste. Abdicar talvez não traga felicidade nem prazer, é certo, mas não estou seguro de que seja de felicidade que precisamos hoje. A ascensão estática do Homem terreno e natural é não desejar o conhecimento nem o prazer. É, aliás, não desejar, com a consciência de que essa posição, como qualquer outra, não pode ser encarada como definitiva.

Fonte da imagem de destaque: Pixabay

Artigo revisto por Ana Rita Sebastião

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.