Os princípios de um bom livro: uma espécie de manual de instruções mais ou menos científico
A democratização, sempre a mesma assassina da cultura, lançou, ao longo do último século e do nosso tempo, novas questões a respeito das obras literárias. A escolarização massiva no mundo ocidental dotou a maioria da população da capacidade de escrever. Essa alteração tem influenciado o mercado dos livros. Se, anteriormente, a quantidade de livros publicados era substancialmente menor, porque a capacidade de escrever estava restrita a uma pequena franja da sociedade, hoje qualquer pessoa com uma mala cheia de notas pode publicar um livro.
Dito de outro modo, a democratização lançou um novo desafio aos leitores: com tanto livro publicado, como criar um padrão de gosto que nos permita distinguir os bons livros dos maus livros? Antes de mais, é importante alertar que, em arte, não há fórmulas feitas. Camões que é Camões traduziu poemas de Petrarca tomando-os como seus, coisa que hoje seria crime. No entanto, não há dúvidas de que pertence ao cânone literário mundial. Simplesmente, à época, devido ao facto de a poética da composição ser muito mais rígida e normativa, a emulação de outro autor (é importante recordar que o verso livre não existia, o que torna a tarefa de tradução, mantendo a métrica e rima, absolutamente meritória) era vista como a última prova de grandeza. Outros tempos. Aquilo que define um bom ou um mau livro depende da época histórica e, obviamente, do leitor. Ainda assim, há alguns truques que podem ajudar os leitores mais inexperientes a sentirem-se mais seguros das suas escolhas editoriais. Só uma nota: não fazer como muitos professores universitários de literatura, que comentam livros com base nas análises e nas críticas, sem nunca os terem aberto. Ler é sempre o melhor ponto de partida. E não há mal nenhum, pelo contrário, em ler um mau livro, pois é dessa forma que as hierarquias de qualidade se vão estabelecendo na nossa cabeça, sem sequer darmos conta.
- Um bom livro tem, por norma, a aprovação da crítica especializada: como em qualquer arte, o critério do best-selling é perigoso. Há autores best-seller a quem é reconhecida qualidade, como José Saramago ou Gabriel García Márquez, tal como há autores best-seller cuja qualidade literária é bastante duvidosa, assim como Nicholas Sparks, E. L. James, José Rodrigues dos Santos ou Pedro Chagas Freitas. É um critério que não serve. Se tens dúvidas de se determinado autor valerá a pena, o melhor é procurares a aprovação de críticos especializados. Sejam professores universitários (Eduardo Lourenço, Jacinto do Prado Coelho, José-Augusto França, Gastão Cruz, Nuno Júdice, Rui Zink, Harold Bloom, Umberto Eco, Slavoj Žižek, etc.), sejam críticos de jornais ou revistas (a nível nacional, recomendo o Jornal de Letras ou o Público e, a nível internacional, The Guardian ou The New York Times). Não há mal nenhum em apoiarmo-nos na opinião de leitores experientes, nem é vergonha nenhuma.
- Um bom livro evita lugares comuns: por outras palavras, o princípio da originalidade, que não existia na Antiguidade Clássica ou na Idade Média como hoje o conhecemos. Quando um livro faz menção recorrente a lugares comuns como “o amor e uma cabana”, “a força de vontade vence qualquer obstáculo”, “não dês atenção a quem não te merece”, “a calmaria do mar”, “o caminho para a felicidade”, etc., desconfia. Por norma, estás perante banalidades que qualquer pessoa diria numa conversa de café, que não acrescentam nada à literatura. Atenção: é possível e recomendável a inspiração noutros autores. A originalidade pura não existe. Não é considerada mau gosto a referenciação, por alteridade ou subversão, de autores que o escritor considera inspiradores. O que é de evitar é uma linguagem demasiado inteligível. O estranhamento das palavras lidas e o repensar nelas é um bom indicador de um bom livro.
- Um bom livro coloca em causa: um debate mais aceso do que nunca nos estudos artísticos. É um facto que um bom livro abala alicerces e coloca em questão dogmas que tomávamos como garantidos. No entanto, esse abalo, para ser considerado a nível literário, dá-se ao nível estético e estilístico. Um livro que apresenta ou glosa ideologias progressistas ou ideais revolucionários não é necessariamente um bom livro do ponto de vista literário. Pode sê-lo, mas do ponto vista político, sociológico, psicológico, etc. Se assim fosse, O Capital, de Karl Marx, ou A Riqueza das Nações, de Adam Smith, seriam consideradas grandes obras da literatura mundial, dada a sua relevância para o curso da humanidade como a conhecemos. De igual modo, um livro que apresente cenários ou situações que consideramos obsoletas no imaginário ideológico dos nossos dias não é necessariamente mau. A crítica deve ser imune à ideologia. Senão, não tarda, estamos a considerar Eça de Queirós um mau autor porque era misógino e racista ou Florbela Espanca uma má autora porque inferioriza a mulher face ao homem em alguns dos seus poemas. Da mesma forma, uma obra que causa polémica não é necessariamente boa. Nos dias de hoje, existe mais do que nunca este perigo. Com a visibilidade individual mais exposta do que nunca devido às redes sociais, existe o engodo pelo qual muitos artistas se deixam levar de conceber uma obra de arte que é polémica porque sim, pois ser polémico, nos dias de hoje, dá muita visibilidade e muito dinheiro. Ser do contra só porque sim não é ser original. É ser contorcionista. Se detetares artistas que mudam de convicções ao sabor das modas, é provável que estejas na presença de um contorcionista.
- Um bom livro tem ritmo: a definição de ritmo é dificílima de explicar, mas vou tentar. Trata-se da capacidade de o escritor dominar os tempos da narração ou do poema, de modo a que o texto, dito oralmente, soe fluído e harmonioso. O ritmo não se ensina nem se treina. É um dom. Ou se nasce com ele ou não se nasce. O ritmo é ditado pela harmonia (ou desarmonia) das palavras e, no caso da poesia, também dos sons. Esse jogo de tempos, no limiar do equilíbrio e do desequilíbrio ao mesmo tempo, de modo a manter um suspense controlado, mas sem aborrecer o leitor. Essa forma de contar que dá a sensação de que ‘só podia ser escrito deste modo’ é algo ao alcance de poucos.
- Um bom livro não tem como protagonistas personagens que idealizam o confronto entre o bem e o mal: a razão é simples. Estamos a tratar, em princípio, de seres humanos. E os seres humanos, se tratados de forma superficial como um mero reflexo de ideais éticos corretos ou incorretos, acabam por ver a sua imagem ou infantilizada ou endeusada. O ser humano é geneticamente contraditório: tem dilemas, dúvidas, traumas, impulsos. É imprevisível e é, sobretudo psicologicamente, muito denso. Quando crias demasiada empatia com uma personagem ou demasiada animosidade com outra, desconfia. As grandes personagens, pelo menos da ficção (por ficção entende-se uma qualquer história com personagens, não necessariamente com figuras irreais) contemporânea, não se encaixam nos estereótipos de herói corajoso ou vilão malvado. O mais comum é causarem no leitor um sentido de distanciamento e, quiçá, fascínio, mas nunca admiração ou ódio.
- Um bom livro tem um vocabulário superior: apreciação que admito desde já polémica e muito discutível. Nem sempre é assim. Por partes: um grande escritor ou escritora é sempre um grande cultor e dominador da linguagem e de todas as suas modalidades. Mas alguém que domina a linguagem não é necessariamente um grande escritor. Uma geração de escritores portugueses, há cerca de um século, decidiu começar a ler dicionários para enriquecer o vocabulário da sua poesia. Os chamados saudosistas, com Eugénio de Castro e Teixeira de Pascoaes à cabeça, acharam que o recurso a palavras raras e a rimas raras era, por si só, um critério de bom gosto literário. Não está em causa a qualidade da poesia destes e de outros poetas desta geração, mas as gerações seguintes demonstraram que dispor de vocábulos que ninguém conhece é mais uma manifestação de excessiva idealização estilística, e também de algum elitismo pedante, do que propriamente de elevação artística.
- Um bom livro supera o teste do tempo: quantas e quantas vezes, na literatura, na música, no cinema, alguma obra nos parece absolutamente brilhante e pertinente no tempo em que é lançada e, passados alguns anos ou décadas, fica perdida nas espirais sempre cruéis do esquecimento? Muitas vezes. O exercício da crítica de arte no próprio tempo da composição e publicação da peça é um trabalho de grande exigência e falibilidade. A história é sempre muito mais fácil de estudar depois de ter acontecido, do que dentro dela, pois os processos naturais e académicos de seleção do essencial já estão consolidados. Na história da literatura não é diferente. A nível nacional, talvez o episódio mais popular seja a atribuição do segundo lugar do prémio de poesia Antero de Quental, promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional, em 1934, à obra Mensagem, de Fernando Pessoa. É hoje unanimemente considerada uma das maiores obras da literatura universal, mas, no seu tempo de composição e publicação, o seu valor messiânico, por alguma razão, passou ao lado dos jurados. E sabem quem ficou em primeiro lugar? A obra A Romaria, de Vasco Reis. Quem? Exato. Triturado pela implacável máquina do esquecimento.
Aviso à navegação: tal como mencionei no preâmbulo, estas indagações não são de modo algum científicas. Apenas refletem a minha experiência enquanto leitor, que, enquanto jovem, é necessariamente diminuta. Não existem, naturalmente, critérios universais, pelo que reduzir os princípios de um bom livro a uma check-list de sete pontos é, por si só, um exercício autodestrutivo e de lesa-arte. A melhor maneira de saber identificar e argumentar em favor de bons livros é, simplesmente, ler. Caso haja interesse do “desocupado leitor”, como diria Miguel de Cervantes, em ir um pouco mais além da superfície da obra, é aconselhável a leitura de edições críticas, caso elas existam. Por norma, estas edições contêm prefácio e/ou posfácio que, de alguma maneira, enquadram, avaliam e analisam a obra, oferecendo ferramentas de compreensão que possam ter escapado ao leitor e abrindo as potencialidades de leitura da obra a outros materiais bibliográficos.
Artigo revisto por Rita Serra
AUTORIA
Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.