Editorias, Opinião

Podem os videojogos ser arte?

É tortuoso definir o segundo substantivo que titula esta crónica. Maior do que a discórdia sobre a origem da ética, e conseguindo até bater a eterna questão acerca da veracidade do cabelo do Donald Trump, é a pergunta sobre a ontologia da arte. O espectro estende-se dos “estritos”, aqueles para quem a arte se restringe à mimese pintada, aos “latos”, os que diluem de tal forma a definição da palavra que esta perde todo e qualquer significado – “arte é levantar-me a meio da noite para beber água”. É óbvio o simbolismo sobre os problemas energéticos que afetam a África subsariana, não acham?

Algures no meio encontra-se a razão. Eu defino arte como um qualquer objeto cultural capaz da evocação de emoções, que sobreviva ao teste do tempo, geralmente graças a um consenso crítico positivo. Pelo menos a boa arte, digo.

As sete artes clássicas encaixam bem neste critério dual: os trabalhos de Dostoiévski ainda são lidos e as esculturas de Miguel Ângelo ainda são apreciadas. O cinema, apesar da insistência estupidificante contemporânea nos efeitos especiais digitais, seguiu pelo mesmo caminho: os filmes de Méliès, de Lang ou de Orson Wells não perderam o seu status como obras-primas.

Como já referi numa crónica anterior, acredito que a banda desenhada pode almejar ser literatura, conseguindo mesmo esse patamar em vários casos. Mas e os videojogos? Serão possuidores desta capacidade de emocionar e de persistir às areias do tempo?

Muitos deles transmitem narrativas inteligentes dando-se ao luxo de obrigar à reflexão por parte do jogador. Vejam-se os casos de Bioshock, de The Stanley Parable, ou de Dark Souls. O primeiro é uma atmosférica narrativa altamente influenciada pelas obras de Ayn Rand e conhecida por ter um dos mais bem executados plot twists na história de tudo. O segundo é uma reflexão filosófica sobre o livre arbítrio – uma viagem interativa acerca dos horrores do determinismo e das verdadeiras consequências das nossas ações. Já o terceiro é uma jornada sub-reptícia pelo existencialismo, abordando a natureza da sobrevivência humana e a necessidade de perseverança face às maiores dificuldades, espelhando-se nas amarguras do quotidiano.

Não falta aos videojogos, portanto, narrativismo, nem a capacidade de transmitir emoções.

Agora entramos numa situação algo bicuda: a da tecnologia. Será que os velhinhos videojogos dos anos 80 e 90 foram capazes de sobreviver ao teste do tempo, tomando em consideração o seu nível de grafismo arcaico e as suas falhas de design?

Desde que consideremos o cinema como arte, então os videojogos por analogia também o serão. Se os filmes do princípio do século XX, com toda a sua falta de qualidade visual, podem ser considerados arte, porque não os videojogos mais primários? Porque não podemos considerar a comédia noir de Grim Fandango como um bom exemplo da narrativa que ultrapassa as limitações técnicas do seu tempo? Ou mesmo o surrealismo de Earthbound? Ou até a história brilhante de Final Fantasy VII, que levou muitos jovens fãs às lágrimas graças à trágica morte de um dos protagonistas?

Também a nível visual muitos videojogos são capazes de uma estética pura e bela. Vejam-se as pinturas sumi-ê de Okami, ou as paisagens montanhosas de Shadow of the Colossus.

Parece-me a mim que a resposta, somados todos os elementos apresentados, é óbvia. Sim, os videojogos podem ser arte. A estética, a música, a interatividade, a narrativa e a filosofia unem-se para formar uma experiência única, incapaz de ser replicada em qualquer outro meio.

Esqueçam a alta-costura. Os videojogos são a 8ª arte.

Fiquem com este vídeo do youtuber VaatiVydia, em que este aborda mais aprofundadamente esta temática.


Este artigo é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico

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