Literatura

Síndrome de Dorian Gray – ou a decadência cíclica do Homem

Não sei por onde começar este artigo. Pronto, está dito. Assim sendo, retomo a partir do texto anterior, relativo a Das Schloss, de Kafka. Aos três leitores dos meus textos aqui na revista (já a contar comigo, com os editores e com a correção linguística), venho apresentar as minhas desculpas. O dandismo forçado é infrutífero, assim como o intelectualismo à lei da bolha. Achei que estava a fazer um grande serviço público ao apresentar uma crítica literária munida do melhor aparato académico que pude recolher em tempo útil. Afinal, limitei-me a mimetizar de forma sucedânea e epigonal o academismo especializado, não acrescentando nada de novo ao que se havia até então produzido sobre o assunto, com a agravante de ter negado deliberadamente o papel formativo e educador de que o jornalismo não se deve esquivar.

Deparo-me, no lançamento deste artigo, com o mesmo problema: O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, é um clássico da Literatura universal, sobre o qual abunda Literatura especializada cujo gabarito e argúcia não ouso igualar. Portanto, para evitar a auto-flagelação que seria um novo exercício de auto-afago intelectual de segunda categoria, sobram-me duas vias: uma abordagem mais ligeira à obra, procurando reabilitar as temáticas relevantes à luz dos nossos dias; ou uma leitura comparativa de épocas que vise possíveis aproximações de carácter historicamente utilitário. Tentarei combinar ambas as abordagens.

O que nos pode ensinar esta obra hoje, aos leitores do século XXI, pouco pacientes face ao lirismo decorativo da literatura? À primeira vista, nada. Trata-se de um romance contemporâneo da obra Drácula, de Bram Stoker, ao bom estilo gótico, com personagens terríveis e um final que mereceria seguramente a aprovação dos fãs de thrillers de linha de montagem que temos atualmente. Coisas epocais que apenas interessam aos ratos de biblioteca.

O que me parece verdadeiramente inquietante nesta obra é o retrato de uma época que, um século volvido, torna a ressurgir com semelhanças assustadoras. Esta obra foi publicada em 1890, envolta num enorme e telenovelesco escândalo, facto que parecia, à época, ser carimbo de qualidade artística imediato. No mesmo período começara a política de alianças militares que iria, 24 anos depois, resultar no primeiro conflito armado global. Dorian Gray é todo o século XIX. Começa por se apresentar como um romântico idealista, cultor da beleza pura, entusiasta do otimismo racionalista, segundo o qual a ciência e a civilização progredirão rumo ao Bem absoluto; e acaba como um hedonista ávido, satírico, cínico, descrente, buscando o belo no terrível, no crime, no ópio – em suma, na decadência de que o seu retrato é símbolo. Com as devidas diferenças, um Carlos da Maia final, que profere a célebre frase “falhamos a vida, menino”, com tiques de Carlos Fradique Mendes, o poeta satânico e sátiro criado por Eça. Quando Chateaubriand, em 1802, inaugura o termo mal du siècle, a ‘doença do século’, longe estaria de imaginar o quão certeiro e assertivo o termo caracterizou Wilde, Gray, Henry, toda uma sociedade. A verdade é que o século XIX começa com a esperança dos ideais da revolução francesa, que dão certidão de nascimento aos estados-nação; vislumbra uma revolução nas ciências naturais, com Charles Darwin e Louis Pasteur à cabeça, o que irradia um sentimento de otimismo face à ciência, vista como a solução para todos os problemas; e chega ao fim com uma geração profundamente vencida e pessimista face ao futuro, guiada pelo profeta Arthur Schopenhauer. Sem querer assustar ninguém, se ensaiarmos a mesma sequência e colocarmos como ponto de partida o fim da Segunda Guerra Mundial, não diria que a sequência histórica fuja muito ao enredo da antecessora. Sabemos como irá terminar.

Este livro está longe de falar de guerras. É, porém, um retrato arrepiante sobre uma sociedade, a britânica neste caso, sinédoque de todo o Ocidente, que se vê mergulhada na mais profunda hipocrisia e no puritanismo mais putrefacto. O mesmo puritanismo que hoje se vê em cada esquina – um inócuo e triste fingimento sobre falsa moralidade que tenta perfumar uma pilha de estrume. Já estava lá tudo. Os nobres vulgares e os realistas, como Basil Hallward, presos à religião da ciência, cegos para o fracasso da civilização, que hoje publicam livros sobre motivação, saúde e bem-estar; a populaça sem voz política e cívica presa entre a mimetização dos péssimos exemplos da classe superior à sua e a completa invisibilidade como alternativa, representada pelas minorias étnicas, raciais e outras; e os dândis, como Dorian e Henry, diabólicos, sem dúvida, mas profundamente cientes de que, perante a iminência do abismo, se refugiaram no prazer do erotismo, das drogas e do humor negro. Não os consigo julgar, embora reconheça a sua arrogância profundamente irritante. E não é, afinal, o puritanismo o presságio da guerra?

Que saída havia para Dorian que não o refúgio no esteticismo exacerbado, a tal ‘arte pela arte’ de Théophile Gautier, ignorante da moral, da sociologia, da política e da ética? Como há pouco referi, a publicação desta obra gerou à época uma parola escandaleira. A minha pergunta é: mudadas as vestes e os protagonistas, não seria também assim hoje? Temo que a resposta seja afirmativa. O decadentismo é isto: desistir da humanidade. E quando extinguimos o humor e cancelamos a oposição sob um manto de farrapo moral, o que estamos a dizer é que aos dândis só lhes resta afogarem-se no prazer e no riso. “Curar a alma por meio dos sentidos”, como insistia Henry a Gray. Porque um puritanismo moderado ainda merece da parte dos intelectuais algum zelo e preocupação. Mas quando esse puritanismo se exacerba, a única hipótese de sobrevivência é o silêncio, encolher os ombros e rir, fumando ópio para esquecer a tragédia que viram antes do tempo e a que ninguém deu ouvidos. Como o narrador sintetiza, numa frase que poderia sintetizar todo o século XIX, “a estupidez hereditária da raça era para ele o verdadeiro baluarte da sociedade”.

A história de Dorian Gray mostra-nos onde nos leva invariavelmente o idealismo teimoso, a recusa do fatalismo, as desmesuradas esperanças de papel, a falsa sensação de absoluto: a um estado de transe negacionista, no qual nos recusamos a ver a realidade, porque temos medo do que aparecerá diante dos nossos olhos. O mesmo Dorian o faz quando tapa o retrato caduco. Perante a impossibilidade de desfazer o passado, esquecer era a solução que restava. E quando nem esta se revelava suficiente para dissipar a aflição do futuro, restava o suicídio.

E é nesse momento que Dorian decide esfaquear o retrato, esquecendo-se de que ele era o próprio retrato, dado que envelheceu e acompanhou a sua destruição moral, ao passo que o corpo de Dorian passou a ser um mero quadro eternamente belo, oco e desumano. O retrato acaba por ser o início da desonra de Dorian, um espelho da sua decadência e deceção com o mundo. Embora o próprio Oscar Wilde tenha recusado sempre o carácter didático deste livro, é impossível esquecer, nestes tempos tão sombrios de anti-intelectualismo, a grande lição que parece esquecida deste século XIX tão rico em mutações. “A morte e a vulgaridade são os dois únicos factos do século XIX que não se podem explicar.” Foi o século em que se alimentou mais intensamente, pelos contínuos progressos da medicina, a esperança de que haveria uma cura para a morte e um segredo para a eterna juventude. Na talvez mais importante frase de todo o livro, Henry dirige-se a Dorian e diz: “Você é o tipo daquilo que o século procura e receia ter encontrado.” Ele é o símbolo da imortalidade do corpo tão procurada pela ciência do século XIX e a prova de que a imortalidade tem um alto preço a pagar, um pouco à imagem do mito de Fausto. A eterna juventude conduz invariavelmente ao tédio e à desumanização. A Dorian foi-lhe sugada toda a alma e valores, chegando ao fim dos seus dias como um mero rosto bonito. A arte, enquanto imortal, simplesmente é. Ela não resolve os problemas do mundo, nem tem de o fazer, porque ela pouco ou nada tem de humana. A alegoria da perfeição terrível é, nesta obra, como talvez em nenhuma outra, brilhantemente ilustrada. E novamente tão urgente, num tempo em que ambicionamos a perfeição edificados a telhados de vidro, perseguindo um ideal de absoluto dogmático, vulgar, fanático, incinerando aqueles que já estão um passo à frente de nós, por medo de sermos esquecidos.

Fonte da Imagem de Capa: Evangelical Focus

Artigo revisto por Ana Janeiro 

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.