Cinema Independente: A Liberdade no grande ecrã
*Este artigo foi redigido no âmbito da edição especial de Abril “Liberdades Mil”*
Poucos são os critérios que delineiam a margem que distingue um filme independente no universo cinematográfico. Na origem da palavra, ser independente consiste em gozar de autonomia, o que no cinema transporta-se para a liberdade afirmada perante grandes produtoras. Neste sentido, qualquer filme que não seja apoiado pelos estúdios de Hollywood é independente. Este filtro, apesar de essencial, é insuficiente para casos fora dos Estados Unidos e inválido quando é dado como decisor total.
O cinema independente parte, na maioria, de entraves financeiros, como também de possíveis imposições autorais e liberdade criativa. Um dos requerimentos para se ter apoio de uma grande produtora passa não só pela sua aceitação, mas, essencialmente, por um recurso financeiro exigente. No início da carreira, a divulgação e promoção feitas por uma produtora de grande nome será uma oportunidade a descartar. Nem sempre se obterá apoios do Estado ou de serviços públicos, portanto, um orçamento baixo é praticamente garantido. Representação, equipa técnica e restantes funções, num caso inicial, são escolhidos por critério de familiaridade. Algumas das soluções passam por organizar uma equipa com conhecidos e/ou estabelecer ligação com produtoras de pequena dimensão. Com a ausência de uma produtora, há uma tendência para que o conteúdo seja menos manipulado e que o realizador possa expressar-se livremente e sem imposições contratuais e consensuais de terceiros. O cinema independente não é somente característico de um cinema iniciante, devido precisamente à consciencialização deste último critério.
Visto que há falta de apoio por parte de distribuidoras e produtoras, o filme independente é frequente estrear-se em festivais criados a seu favor. Embora haja obstáculos alusivos à fase de divulgação, festivais como o Indie Lisboa servem de palco para a valorização de filmes independentes que posteriormente se espalham para as salas mais pequenas e possíveis premiações. Os prémios anuais Independent Spirit Awards são um exemplo de atenuação das diferenças meritórias entre os filmes independentes e os de grande produção.
Nem sempre os filmes independentes simbolizarão menor orçamento, ou meios de divulgação menores. Hollywood passou a ser um espaço de independência, também, e a forma como separa os seus grupos de filmes pode ser um passo para o fim da confusão gerada. No topo, os blockbusters produzidos pelas maiores entidades como é o caso de Star Wars; de seguida, o conteúdo de estúdios subsidiários, exemplo de 12 Years a Slave; e por fim, obras apoiadas por estúdios pequenos e freelancers, caso de Black Swan. Apesar de ser um modelo aplicado a Hollywood, já é caminho para uma simplificação de diversos patamares na definição do cinema independente.
Outro ponto de vista é a delimitação através do espírito. John August, argumentista de filmes como Charlie and the Chocolate Factory, defende que a definição se deve reservar ao filme em si e não ao seu financiamento. Acrescenta que «Há uma razão pela qual a palavra “independência” tantas vezes aparece perto de “revolução”», e que, como tal, a essência de um filme independente pretende ignorar a atenuação de golpes que os estúdios põem em prática. Exemplo do movimento, em 1968, George Romero chocou os espetadores com o filme Night of the Living Dead, provocando sentimentos que o filme de estúdios maiores não se atrevia a alinhar, por não querer correr riscos de insucesso na posse de um orçamento maior. Cabe então ao filme independente reivindicar a arte cinematográfica sem terceiras amarras.
A seguinte lista, ordenada cronologicamente, pretende mostrar alguns exemplos de filmes independentes, as suas motivações e repercussões na história do Cinema.
SHADOWS, JOHN CASSAVETES (1957/1959)
John Cassavetes, para além de um ator reconhecido, era considerado o Pai do Cinema Independente dos Estados Unidos. Shadows, primeiro filme do autor, consta de duas versões realizadas, uma de 1957 e outra de 1959. A obraconfere diversos critérios que fazem com que entre na lista de filmes independentes, desde o casting composto por amigos de Cassavetes, a limitação de materiais de filmagem e precisamente por impor temáticas até à data ignoradas.
O facto de Shadows se focar numa relação inter-racial, através de diálogos improvisados durante o período da Geração Beat em Nova Iorque, cria um ambiente propício a um desinteresse por parte do público. Na América a obra quase passa despercebida e em Portugal, concretamente, é proibida a sua estreia, devido à sua temática racial. No entanto, na Europa o filme foi congratulado com o Prémio da Crítica do Festival de Veneza e, apesar do desdém nos EUA, a atenção de Hollywood foi despertada.
O seguinte momento da carreira do protagonista de Rosemary’s Baby é acompanhado por uma relação com grandes estúdios até a mesma se dissolver num desentendimento com os produtores. A rotura com Hollywood fez com que John Cassavetes se tornasse definitivamente realizador independente. O seu segundo filme independente, Faces, não sofre qualquer implicação com esta rutura, pois recebeu três indicações aos Óscares.
A cinematografia de John Cassavetes, que vai além de Shadows e Faces, é o ponto-chave para a compreensão de que apesar da iniciação do realizador implicar menores apoios, também o seu posterior reconhecimento não é limitativo a uma submissão às grandes produtoras. Para além de o seu cinema retratar a quebra de tabus no grande ecrã, a sua filiação ao cinema independente serve de exemplo de contradição à ideia de que o cinema independente é incapaz de ser reconhecido ou contemplado.
ERASERHEAD, DAVID LYNCH (1977)
O segundo filme da lista quase não necessita de introduções. Para muitos, a primeira longa-metragem de David Lynch, Eraserhead, é a obra que mais reflete o potencial do cineasta. A história aparentemente típica de um casal que acaba de ter um filho passou, na época, a ser um dos favoritos nas sessões da meia-noite. O surrealismo horrendo forçadamente encaixado no bebé do casal é igualmente bem-sucedido ao espalhar o terror que leva revistas e cinéfilos a repudiá-lo. A produção do filme passou por entraves financeiros que foram resolvidos com doações de Jack Fisk e sua esposa e com o apoio da American Film Institute, instituição onde Lynch estudava. No entanto, não saiu prejudicada. Para além do controverso cinema lynchiano, Eraserhead, mesmo produzido de forma limitada, destaca-se e deixa o seu legado, nomeadamente através da sua preservação pela National Film Registry, na Biblioteca do Congresso dos EUA.
Casos como Eraserhead são comuns no que toca à iniciação do realizador no meio e respetivas dificuldades no financiamento de obras. No entanto, o destaque desta escolha, em conjunto com exemplos como Reservoir Dogs, de Tarantino, reflete o potencial que um filme, mesmo independente, pode ter na carreira do autor e no marco histórico do Cinema.
ETERNAL SUNSHINE OF THE SPOTLESS MIND, MICHEL GONDRY (2004)
Eternal Sunshine of the Spotless Mind, filme realizado por Michel Gondry, faz parte do grupo de filmes independentes que se conseguiu elevar a um culto contemplado pelos fãs. Para além de ser considerado por muitos críticos um dos melhores filmes do século XXI e dos anos 2000, a história de um casal que tenta submeter-se a uma eliminação de memórias conjuntas teve lugar em diversas nomeações e prémios. Entre as doze indicações, o filme protagonizado por Jim Carrey venceu duas de Melhor Roteiro Original e uma de Melhor Montagem.
A ocupação deste filme na lista vem com o propósito de representar o culto prestado nas menores produções, como também o de abrir espaço para o seu reconhecimento que por vezes é ofuscado por Juno ou Lost Translation, filmes igualmente idolatrados. Também o seu espírito libertino se observa na quebra de zonas de conforto até para os atores, como é o caso de Jim Carrey, que se apresenta num ambiente diferente daquele a que o público está habituado. E, apesar de haver um risco que possa levar a uma representação frágil e consecutivo fracasso, a sua performance em Eternal Sunshine of the Spotless Mind é considerada a melhor do ator.
A FÁBRICA DE NADA, PEDRO PINHO (2017)
Nos últimos anos, o cinema português tem tido mais visibilidade à escala mundial. No entanto, o público português ainda vê o seu cinema como de baixa qualidade e de produção, logo intelectualmente distante do entendimento comum. A dificuldade de acesso ao cinema português e a sua aparente inferioridade na produção leva a um pensamento de que o seu conteúdo será igualmente inacessível. O facto de haver um grande leque de cinema português independente não deve perpetuar este pensamento. Em sala, o Cinema Nimas, a Cinemateca e o Cinema Ideal divulgam obras portuguesas, e, para os fãs de OTT, a FilmIn é talvez a plataforma com mais leque de cinema português independente. É nesta última que A Fábrica de Nada se revela.
Realizado por Pedro Pinho, a história que relata um impedimento de desfecho de uma fábrica pelos seus operários estreou-se no Festival de Cannes, onde venceu o Prémio da Federação Internacional de Críticos de Cinema. A obra é considerada independente, devido à sua produção feita pela pequena TerraTreme Produções. O facto de ter ganho dois prémios em diferentes festivais e de ter um reconhecimento internacional vem combater alguns dos preconceitos apontados.
NOMADLAND, CHLOE ZHAO (2020)
Nomadland é o caso mais recente da lista, tendo sido um dos grandes vencedores dos Critics’ Choice Awards, arrecadando quatro prémios. O caso de Chloe Zhao é semelhante ao de Lynch – as suas obras são independentes, devido à sua presença recente no Cinema. No entanto, este caso acrescenta um pormenor relevante. Com a história de uma mulher que se torna nómada após um colapso económico em Nevada, Zhao elevou-se a segunda mulher a vencer a categoria de melhor direção no Globo de Ouro e primeira asiática. Também semelhante a Cassavetes, a cineasta ganhou a atenção de grandes produtoras e foi convidada a realizar o novo filme da Marvel. O que pode parecer uma desilusão no percurso da cineasta, como também poderá ser uma renovação no conteúdo externo ao imaculado cinema independente. Resta-nos saber que consequências esta relação entre realizadores independentes e Hollywood terá nos próximos anos na história do Cinema e na sua mutação.
Artigo redigido por Margarida Ramos
Artigo revisto por Ana Sofia Cunha
Fonte da imagem de destaque: American Cinematographer
AUTORIA
Estuda audiovisuais, no entanto sempre teve necessidade de se comunicar através da escrita. Foi no secundário que começou por incentivo dos professores a desenvolver críticas e a escrever poesia. Agora, tem como principal interesse o Cinema, onde tenciona dedicar-se, futuramente. Outro fator importante para si é também a análise e crítica de assuntos sociais que lhe parecem exigir maior atenção.