Cinema e Televisão

A 7ªArte no (des)conforto de Deus Ex Machina

Por muito que nos sintamos próximos do Cinema, devido à sua crescente acessibilidade e divulgação, em certos momentos essa relação já nos levou a deceções maiores que qualquer admiração que tenhamos até à altura sentido. O fenómeno poderá afetar de forma mais dramática os indivíduos que sigam o cinema e conteúdos semelhantes com objetivo de os idolatrar. No entanto, em consequência da cegueira fanática, os defeitos acabam por passar ao lado. A deceção pode não chegar a concretizar-se, pois os seguidores e fãs de alguns dos conteúdos não chegam a querer ver a realidade do seu ícone artístico. Lidar com a desilusão é um ato de coragem que por vezes só cabe aos que observam de uma certa distância, sem qualquer propósito de venerar o conteúdo.

Os mecanismos que facultam a resolução da narrativa, aplicada ao cinema, são um dos maiores motivos para o originar de uma reação negativa do espetador.

No momento inicial de escrever o argumento para um filme, é comum chegar a um beco sem saída anterior ao término da fita. Na Grécia Antiga o mesmo se sucedia no teatro, quando durante um conflito ou complicação difícil de se resolver se recorria ao método do Deus Ex Machina. Com origem do grego, ἀπὸ μηχανῆς θεός (apò mēkhanḗs theós), Deus Ex Machina, vem da ideia de um Deus surgido da máquina.

Na prática teatral, a peça terminava com o aparecimento de uma divindade, representada por um ator a descer com auxílio de um guindaste até ao local da encenação. Esta solução refletida num evento inesperado era bastante usada, por exemplo, nas tragédias de Eurípedes.

No fundo, a sua utilização tinha como propósito arranjar uma solução para uma sucessão de acontecimentos que pareciam não ter qualquer conclusão no enredo. De forma a não se desistir da história desenvolvida até ao momento, criava-se uma aparição de uma entidade tão grandiosa como deuses, de forma a atenuar qualquer conflito que houvesse entre personagens ou nos incidentes criados inicialmente. A presença de um Deus seria suficientemente poderosa e remediável, no entanto, a sua aparição era sempre inesperada ou sem nexo no contexto da narrativa.

Fonte: Pinterest

No cinema, o método começou a ser usado com o mesmo propósito: solucionar problemas ocorridos na altura do clímax e consecutiva resolução, desta vez, sem o teor místico da aparição literal de um Deus. Na imagem acima é representado o caminho padrão que é percorrido na escrita de um argumento. Por hábito, um filme possui três atos, sendo eles a introdução e construção da origem do incidente; o confronto, que é a altura em que se desenvolve a carga dramática; e, por fim, o último ato, que simboliza uma resolução que poderá ou não coincidir com a solução do incidente inicial.

Em termos práticos, o primeiro ato simbolizaria a descrição do personagem principal e o seu incidente, que poderia ser a perda de um ente querido, por exemplo, de seguida poderíamos acompanhar o personagem na busca do culpado dessa morte e, por fim, no clímax iríamos descobrir a pessoa ou consequências dessa busca, levando ao término do objetivo do herói. Este esquema trabalha como um medidor da utilização do Deus Ex Machina. Veremos na lista de seguida que, em alguns casos, a solução grega é utilizada especificamente na zona de clímax entre os dois últimos atos e noutros são feitas referências nos primeiros atos, de forma a que a chegada do Deus não seja tão notória. Os exemplos seguintes retratam essa distinção, como também mostram que a prática deste método nem sempre é possível de qualificar de forma linear.

HARRY POTTER AND THE CHAMBER OF SECRETS, CHRIS COLUMBUS (2002)

Fonte: Myth Creants

O primeiro filme da lista, e segundo da saga Harry Potter, apresenta dois Deus Ex Machina só numa cena. O romance escrito por J.K. Rowling inicia o segundo ano de Harry Potter (Daniel Radcliffe) em Hogwarts, na escola de magia e bruxaria. A Câmara Secreta, elemento essencial do filme, é descrito como sendo uma passagem criada por um dos fundadores da escola, Salazar Slytherin. Crê-se que a Câmara só possa ser aberta por um dos seus herdeiros e que só este poderá combater um monstro perigoso para os Muggles, que no seu interior reside. O enigma aumenta o interesse de Harry, que dá por si a descobrir a localização. Na cena de tensão, o único recurso que falta utilizar para uma resolução do mistério é, precisamente, um Deus Ex Machina.

É no exato momento em que Harry está prestes a ser apanhado pelo monstro Basilisk que aparece Fawkes, fénix de Albus Dumbledore (Michael Gambon), a sobrevoar em direção à cobra. Não só a ave fura os olhos do inimigo, como também traz consigo o Chapéu Seletor. Após despistar a cobra, Harry volta para a zona inicial da cena, onde reaparece o monstro. Ao olhar em redor, vê aparecer inesperadamente uma espada de dentro do chapéu trazido pela fénix, com a qual acaba por usar como ataque a Basilisk. Apesar de triunfante, Harry fica ferido no braço. Na altura em que o herói da cena parece desvanecer, novamente, reaparece a fénix, que desta vez cura o braço do personagem com as suas lágrimas.

O Deus Ex Machina é representado em forma de ave e de espada no clímax de Harry Potter and The Chamber of Secrets. O facto de Fawkes aparecer duas vezes em instantes de fragilidade do personagem principal é um exemplo. Não sabemos como a fénix foi ali parar, nem o que fez durante o combate que é retomado entre o monstro e Harry. Apesar de a sua chegada ser inesperada na cena em questão, noutras anteriores foi garantido que esta personagem era introduzida de forma a atenuar o socorro prestado.

No início do filme, Harry é chamado ao escritório de Dumbledore para conhecer a sua fénix. Esta cena, apesar de inofensiva e sem grande importância, é o suficiente para mostrar não só a Harry como ao espetador as características da fénix. Na segunda vez que Fawkes salva Harry, o jovem relembra-se de no escritório ter aprendido que a lágrima da fénix cura feridas. Parece que, para além de nós, também o próprio personagem se surpreendeu, dado as suas interações com a fénix não terem sido suficientes para se lembrar do pormenor.

Se as características milagrosas da ave tivessem sido referidas mais vezes isso, faria com que o herói ao ver a fénix aparecer não receasse ferir-se. Este sentimento iria contrariamente ao que é esperado de um herói ao ferir-se: um momento de sacrifício e de despedida perante os que estão ao seu redor. Harry ao ver-se ferido despede-se de Ginny (Bonnie Wright), o que incentiva a carga dramática no filme. Por um lado, a presença da fénix até ao clímax é importante, de modo a camuflar a sua função de Deus Ex Machina, mas não o suficiente ao ponto de anular pontos dramáticos do filme. Um dos pontos negativos deste recurso é a possibilidade de por vezes tirar o protagonismo ao herói, que, na verdade, só acaba por vencer porque teve ajuda extra e não pelo próprio valor e força.

Enquanto o Deus Ex Machina da Fawkes é controlado, a aparição da espada dentro do chapéu nem tanto. Para além de se colocar a fénix na cena propositadamente para uns dos salvamentos, o herói não tem qualquer arma. A varinha de Harry é pisada e o dono encontra-se em desvantagem sem qualquer ferramenta perigosa para o seu inimigo. Em suma, para além de se pôr a ave em cena, cria-se o inesperado de a mesma trazer um chapéu, onde nesse chapéu irá aparecer uma espada que eventualmente levará à resolução do problema. Este último pormenor infelizmente não tem forma de ser camuflado ou justificado pelo seu propósito momentâneo. A falha talvez passe despercebida precisamente por vivenciarmos um mundo mágico. O mundo mágico de Harry onde é normal aparecer uma espada inesperada por dentro de um chapéu que fala.

THE HOUSE THAT JACK BUILT, LARS VON TRIER (2018)

Fonte: Other People’s Movies

O segundo filme projeta-nos para o desconforto próprio do cinema do dinamarquês Lars Von Trier. Contrariamente a Harry Potter, o Deus Ex Machina presente não funciona como uma solução. Pelo menos definitiva. The House that Jack Built acompanha nos primeiros atos a caracterização do personagem principal, um serial killer que atua há doze anos. O mais recente filme do cineasta inicialmente teria o intuito de ser uma série televisiva, sendo que as primeiras ações espelham diversos atos criminosos do personagem principal e que poderia cada uma representar um episódio.

As peculiaridades do cineasta refletem-se tão meticulosamente na vida de Jack (Matt Dillon) ao ponto de as intenções cinematográficas provocarem um inevitável Deus Ex Machina. Desde o início do filme percebemos que o que estamos a presenciar são imagens dos relatos que Jack está a fazer a alguém que não nos é inicialmente revelado.

Após termos sido alvo de diversas cenas de crime, vítimas e cenários diferentes, a narrativa cria um beco sem saída. O personagem principal não tem perigo de ser apanhado pela polícia, os seus crimes são feitos sempre de forma clara, não temos qualquer incidente ou objetivo no serial killer que faça desenvolver até um clímax. Lars Von Trier no último ato levanta o véu na cave de Jack, onde o outro sujeito se encontra sentado. A voz que comunica com Jack desde o início é afinal um guia que o iria auxiliar no percurso até ao inferno e purgatório. Lars Von Trier para além de fazer uma reviravolta que se mostra pensada e organizada, acrescenta uma ação forçada.

Percebemos através da foto de capa deste artigo que Lars Von Trier tinha intenções de fazer referência à Divina Comédia de Dante Alighieri, onde o próprio é acompanhado por Virgilio (Personagem Verge interpretada por Bruno Ganz) na chegada ao inferno.

No entanto, para fazer referência exata à imagem de Virgilio e Dante no barco com vários corpos apoiados, seria necessário um elemento fundamental – o vermelho da roupa de Dante. Até ao momento, em nenhuma cena Jack estaria vestido de vermelho e, de forma a mudar o vestuário do personagem, a favor da referência literária, o Deus Ex Machina foi recorrido.

Anteriormente é referido que houvera assaltos perto da residência de Jack. É nos deixado claro que não foi ele a cometê-los, nem nunca chega a ser um tema relevante ou próprio de se relembrar no filme. Lars Von Trier não deve concordar com isso, pois a forma que arranjou para solucionar a caracterização foi precisamente fazendo com que o serial killer matasse um colega que o denunciara à polícia por ter concretizado os assaltos e de seguida roubou um robe à vítima, exatamente, vermelho. Para além de esta denúncia ser forçada, é propícia a uma busca pela polícia que é necessária para haver motivos para o personagem fugir da própria cave. Caso contrário, não haveria motivos para a abandonar e seguir o guia que o levará ao inferno.

Apesar de o Deus Ex Machina não resultar na vitória de um herói, serve como solução para os propósitos do cineasta. Graças ao método, facilmente Lars Von Trier quebrou a monotonia do relato dos crimes e “deu sentido” à referência que levará ao ponto final do filme. Infelizmente, este serve quase como um segundo Deus Ex Machina, quando sem alternativa se recorreu à solução mais acessível: um deslize mortal do serial killer na passagem ambiciosa para o Paraíso.

SIGNS, M. NIGHT SHYAMALAN (2002)

Fonte: Zimbio

No mesmo ano que o segundo filme da saga Harry Potter apareceu, Signs estreava com a presença jovem de Joaquin Phoenix como personagem secundário, ainda. Graham Hess (Mel Gibson), um antigo pastor episcopal, após a morte da sua mulher, passou a partilhar os seus dias com os seus filhos e o seu irmão mais novo Merrill (Joaquin Phoenix), numa fazenda de milho situada no interior dos Estados Unidos.

O incidente da narrativa é dado pelo aparecimento de uma série de círculos no seu milharal, levando a suspeitas de uma visita para além da humana. Signs é uma história sobre extraterrestres e, como tal, terá fenómenos que não poderemos confirmar cientificamente devido ao mistério do tema. O Deus Ex Machina deste filme é naturalmente executado no combate aos intrusos. No último ato, quando a família já parece derrotada, um copo cai de uma cómoda e, ao atingir um dos extraterrestres, causa a sua morte.

A solução não foi inesperada, desde o início que o espetador sabe que a filha de Graham (Abigail Breslin) tem uma obsessão por beber água de copos diferentes e deixá-los em diversas zonas da casa. Talvez o problema seja do espetador em achar que este será um filme diferente de extraterrestres e que a água não será pobremente usada como a arma letal.  Os filmes com temáticas alienígenas são mais propícios a recorrerem a esta ferramenta devido ao já mencionado desconhecimento. Mesmo assim, este pormenor possibilita, também, uma maior flexibilidade e criatividade perante o tema.

Infelizmente, outro caso em que a solução chega a um desenrasco é o filme sobre aliens protagonizado por Tom Cruise, War Of The Worlds, de Steven Spielberg. A água como Deus Ex Machina é recorrida também em filmes como The Wizard of Oz, de Victor Fleming, em que uma personagem ataca de forma inesperada uma bruxa com um copo de água como solução da cena.

DONNIE DARKO, RICHARD KELLY (2001)

Fonte: Reddit

Donnie Darko, um dos filmes de culto da passagem do milénio, trabalha o Deus Ex Machina de forma diferente de todos os outros exemplos anteriores. Enquanto que em Signs ou Harry Potter são executadas as soluções, tentando ocultar o facto de recorrerem à mesma, o filme de Richard Kelly cria o oposto.

Numa cena em que o jovem Donnie (Jake Gyllenhaal) e a sua namorada Gretchen (Jena Malone) são apanhados e atacados por um grupo de rapazes, o casal vê-se em apuros na rua deserta sem qualquer apoio. No entanto, e como já esperado, o método Deus Ex Machina entra em ação, desta vez, de forma avisada. Donnie, quando deitado no chão a ser agredido, profere “Deus Ex Machina”, quase como uma didascália ou um alerta para o que poderemos de seguida ver. Ao fundo, um carro segue na direção da cena de violência, inesperadamente, e acaba por afugentar o grupo de jovens atacantes.

Donnie Darko sai do espetro cinematográfico e decide deixar claro que tem noção e não teme que o espetador saiba precisamente o que está a ser posto em prática. O mesmo acontece com o filme Matrix Revolutions, quando nos créditos a personagem que salva o clímax é intitulada pelas irmãs Wachowski de Deus Ex Machina. A transparência sobre o método praticado levanta o debate entre os espetadores e cinéfilos sobre as consequências ou intenções por detrás da concretização de uma peça cinematográfica.

O Deus Ex Machina é uma solução pré-feita proveniente dos Gregos e que vem para ficar. Em qualquer filme, seja de culto, seja de autor, seja abrangido por Hollywood, veremos uma adaptação do seu recurso. Por diversos motivos, Hollywood poderá ter mais probabilidades de o utilizar, não só devido à maior rapidez na pré-produção da obra, como também ao menor rigor ou foco no roteiro aplicado em Cinema. Os filmes de Hollywood são ótimos exemplos, pois a sua maior divulgação e reconhecimento geral do público servirá para mais tarde conseguirmos detetar, sempre com uma certa distância, o recurso do Deus Ex Machina no Cinema que nos seja mais prezado e que achemos que nos acrescente mais ao conhecimento cinéfilo.

Artigo redigido por Margarida Ramos

Artigo revisto por Inês Pinto

Fonte da imagem de destaque: Impawards

AUTORIA

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Estuda audiovisuais, no entanto sempre teve necessidade de se comunicar através da escrita. Foi no secundário que começou por incentivo dos professores a desenvolver críticas e a escrever poesia. Agora, tem como principal interesse o Cinema, onde tenciona dedicar-se, futuramente. Outro fator importante para si é também a análise e crítica de assuntos sociais que lhe parecem exigir maior atenção.