Opinião

Dia Mundial do Sono: O dia em que dormi moura e pereça

Anualmente, nas “celebrações” do Dia Mundial do Sono há pouca coisa, para não dizer nenhuma, para efetivamente celebrar. O último decénio encarregou-se de nos trazer amiúde novos estudos que apontam, por um lado, para um défice de horas e de qualidade de sono de uma grande fatia da população mundial, bem como, por outro, para uma enxurrada de consequências nefastas em que, a curto, médio e longo prazo, a privação do sono desagua.

Como estamos na secção de opinião e de sono, em termos clínicos percebo tanto como da poda de bananas da Madeira, seria estúpido trazer à tona mais um artigo moralista sobre a importância do sono reparador e os seus efeitos na memória, no raciocínio, na prevenção do stress ou do Alzheimer. Já todos sabemos isso. O que talvez não saibamos, e aproveito para o comunicar em primeira mão, é que hoje é possível que haja no mundo mais moralistas do que pessoas com um bom regime de sono.

Assim, e na medida em que se esperam celebrações, o que se segue é uma contenda laudatória a respeito de uma espécie – por vezes ostracizada, tantas vezes esquecida –  da fauna do planeta que, silenciosamente, dá o corpo ao manifesto, sofre e dá orgulhosamente a cara por todos nós: aquilo a que a comunidade científica denomina de os orgulhosamente “sonâmbulos”, de nome científico homo elatus sonambulus.

Os orgulhosamente sonâmbulos são uma espécie cujo habitat natural não tem região fixa, embora habite com mais volume na Europa, América do Norte e, mais recentemente, em alguns países asiáticos, com o Japão em destaque. Trata-se de uma espécie que resulta de uma mutação genética do homo sapiens sapiens como o conhecemos, mutação essa que se acredita ter começado nos primórdios das sociedades pré-industriais do século XVIII; contudo, com uma multiplicação em massa que se dá no início da revolução digital dos finais do século XX, ainda em curso.

Este mamífero bípede pode ser facilmente confundido com a espécie que o origina em termos físicos. É na observação participante e detalhada do animal que detetamos algumas diferenças substanciais. O traço diferenciador principal consiste no orgulho, permanentemente verbalizado, que a espécie assume, junto do homo sapiens sapiens, sobre o número de horas diárias que dorme. Ao passo que o homo sapiens sapiens adulto dorme, em média, 7 a 8 horas por noite, o homo elatus sonambulus apenas dorme 3 a 4 horas. Em muitos casos, os cientistas observaram também que, contrariamente ao homo sapiens sapiens, que dorme quase sempre à noite, esta nova subespécie pode não necessariamente dormir à noite. Chegam inclusivamente a comparar este comportamento a alguns animais selvagens, como por exemplo o golfinho, que dorme com um olho aberto, ou outras espécies que não executam um sono profundo devido ao estado de alerta perante o inimigo. Uma vez que é uma espécie intelectualmente mais limitada devido à privação voluntária do sono, tem mais dificuldades em criar rotinas quotidianas estáveis, acabando por dormir muitas vezes durante o horário diurno, maioritariamente da parte da manhã.

Quanto às formas de socialização, o homo elatus sonambulus é também um pouco diferente. Por norma, é uma espécie que prefere estar isolada e costuma, inclusivamente, recusar convites de homo sapiens sapiens para o convívio. Os espécimes afirmam que “não têm tempo para isso agora”, mas que “um dia têm de combinar”. Entre as atividades mais comuns realizadas de forma solitária estão o preenchimento de tabelas em Excel ou relatórios de desempenho de empresas – isto no caso dos animais mais velhos. Nas espécies entre os 18 e os 25 anos, é mais comum a iniciação de startups, o registo e publicação de selfies e de stories em parceria com marcas, a realização de conteúdo irrelevante e iletrado como podcasts ou videocasts, a venda de roupa em segunda mão ou a realização de workshops sobre como fazer manutenção de plantas em apartamentos. “Com tantos e tão importantes projetos em mãos, fica realmente difícil estar com amigos e familiares, assim como atingir o número de horas de sono do homo sapiens sapiens”, afirma Claudomiro Ludocrécio, investigador que conduziu um estudo pioneiro sobre esta espécie numa parceria da International University of Vilar de Perdizes e a Harvard Graduate School of Arts and Sciences.

Este estudo revelou ainda detalhes sobre o regime alimentar do homo elatus sonambulus. Enquanto o homo sapiens sapiens possui um regime alimentar baseado no consumo de legumes e de fruta fresca, assim como alguns produtos de origem animal como carne, peixe, leite ou ovos, esta espécie opta por um regime mais simplificado. Como raramente confeciona com o auxílio do fogo os próprios alimentos, mas tem uma dentição semelhante à da sua antecessora, a sua alimentação consiste em alimentos processados como hambúrgueres, conservas de atum e de sardinha, bolachas, batatas fritas de pacote, pizzas pré-congeladas – em muitos casos combinados com uma grande quantidade de carboidratos e temperos como ketchup, mostarda, sal ou maionese. Além disso, verificou-se que não adotam um hábito rotineiro de se alimentarem sempre nos mesmos horários, optando por proceder à reposição energética quando apresentam sintomas de fome, em horário aleatório, tal como os animais selvagens. Foram igualmente documentados casos em que se saltam refeições ou em que existe um desconhecimento do próprio conceito de refeição. Mais recentemente, têm adquirido o hábito de simplesmente encomendar a sua comida de empresas externas com recurso a aplicações de telemóvel, como Uber Eats ou Glovo. “A lógica é a mesma face ao regime de sono: há que maximizar o tempo. Dormir e cozinhar levam muito do nosso tempo. E aquele podcast do Rui Unas, aquela série de Netflix igual a todas as outras ou aquele rabisco da Clara Não sobre o empoderamento não podem ficar por ver, dada a sua capital importância para o equilíbrio do ecossistema global”, refere Ludocrécio, acrescentando ainda que, em relação ao consumo de comida entregue por estafetas, as informações até à data são inconclusivas.

 Em relação às práticas reprodutivas, os cientistas apontam um volume menor de relações sexuais e da predisposição para a existência de parceiros. Uma vez que são espécies mais caseiras, acabam por efetuar a procura de parceiros sexuais através da Internet, quer nas redes sociais convencionais, quer através de aplicações móveis especialmente criadas para o efeito, como o Tinder. São, por norma, mais tímidos e menos hábeis a comunicar, quer verbal, quer textualmente, pelo que a comunicação à distância é vista como uma forma confortável de conhecer outros espécimes e, em caso de não haver interesse em avançar para a cópula, proceder à prática do ghosting, que consiste em subitamente proceder à cessação do contacto com um potencial parceiro, sem aviso prévio e sem apresentar qualquer justificação. No entanto, um fenómeno curioso que tem vindo a ser analisado pelos académicos é que esta espécie, em especial nas idades mais precoces, acaba por observar uma atitude paradoxal no momento em que socializa presencialmente com outros espécimes em contexto social, em habitats como bares e discotecas. Uma vez que a frequência sexual é mais diminuta, o homo elatus sonambulus apresenta uma predisposição para a cópula muitíssimo superior ao homo sapiens sapiens nos mesmos habitats, revelando mesmo, em casos extremos, sintomas visíveis de stress, irritação e desespero – este último sintoma mais frequente em machos adultos. Os cientistas acreditam que isto acontece devido ao gap nas habilidades emocionais e comunicacionais face ao homo sapiens sapiens, com quem convive no dia a dia, levando ao agudizar de sintomas como ansiedade, depressão ou a síndrome de FODA (Fearing of Dating Again).

Estes animais possuem também algumas formas de culto religioso específicas da sua espécie. Entre as celebrações mais comuns está a efetivação e posterior menção orgulhosa da realização de diretas, quando o já curto tempo disponível para tanta atividade se encurta ainda mais em épocas de exames ou deadlines de projetos empresariais. O número de vezes que este sacrifício é realizado constitui uma forma de distinção hierárquica entre os espécimes: segundo Paddy Cosgrave, pastor emérito desta religião, quanto menos horas dormires, mais próximo estarás do sucesso profissional. Além de Cosgrave, o homo elatus sonambulus realiza celebrações de culto a outras personalidades eminentes como Jack Dorsey, criador da rede social Twitter, Barack Obama e Donald Trump, antigos presidentes dos Estados Unidos da América, ou, no caso dos espécimes portugueses, Marcelo Rebelo de Sousa. Todas estas personalidades de sucesso são conhecidas por dormirem menos de 6 horas por noite, o que motiva a massiva realização de sessões de culto em sua honra. Anualmente, a seita reúne-se no evento que celebra o sucesso profissional à custa do sono, da saúde mental e da alimentação equilibrada: Web Summit. Trata-se de uma cerimónia religiosa em massa onde se realizam missas dadas pelos homo elatus sonambulus mais bem sucedidos, fornecendo dicas aos homo elatus sonambulus comuns sobre as fórmulas mágicas a seguir para ganhar muito dinheiro – o caminho para a felicidade. As máximas mais ouvidas são o esforço, o trabalho e o empreendedorismo. Infelizmente, como em qualquer seita, o Web Summit acaba por atrair também fanáticos mais radicais da religião que estão dispostos, inclusivamente, a trabalhar 12 a 14 horas por dia durante o evento sem qualquer remuneração (sem ser, claro está, a possibilidade de networking) e ainda a adquirir t-shirts do pastor Paddy Cosgrave por mais de 700 euros.

Relativamente ao estado de conservação, não há consenso entre a comunidade científica. Por um lado, a extinção da espécie está longe de ser um cenário provável – bem pelo contrário, na medida em que, com a revolução digital e as práticas comuns de parceria sexual com homo sapiens sapiens, a espécie encontra-se em crescimento acelerado. Por outro lado, este crescimento causa alguma apreensão entre os cientistas, pois esta espécie já é dominante face à sua oriunda e teme-se que isso acabe por levar às vias de extinção o homo sapiens sapiens a médio prazo. Em contrapartida, o homo elatus sonambulus possui uma esperança média de vida cerca de 10 a 15 anos mais baixa em comparação (70 contra 85, nos países ocidentais), devido à acumulação, desde idades precoces, de stress, ansiedade, depressão, levando a altas taxas de suicídio entre a espécie (os cientistas utilizam o caso do Japão como exemplo extremo), assim como o desenvolvimento de doenças – como obesidade ou Alzheimer –, estando, portanto, mais propensos a problemas cardiovasculares e associados.

No rescaldo deste estudo, a comunidade científica começou a encetar contactos mais intensos com organizações não-governamentais de conservação da natureza como a WWF, de modo a controlar a expansão desta espécie potencialmente invasora, bem como auxiliando-a a mitigar os riscos para a sua saúde, entre os quais a privação voluntária do sono. Ainda que tal, por vezes, não seja fácil: “Muitas vezes encontramos homo elatus sonambulus em posição favorável para a captura e posterior auxílio perante situações que entendemos de risco, tentamos chegar perto, mas o próprio animal, muitas vezes em estado de negação e forte irritabilidade, foge ou recusa a ajuda. Refere constantemente que não quer forçar a conversão, porque isso lhe tomaria muito tempo e seria um entrave à sua conceção de felicidade. Nestes casos, fica difícil”, lamenta Ludocrécio.

Fonte da imagem de destaque: LabRoots

Artigo revisto por Andreia Custódio

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.