Literatura

Escrever direito por linhas tortas: A resistência singrante das mulheres na Literatura portuguesa

A mulher é um elemento muito forte e presente na Literatura, tanto como personagem ficcional, como sua criadora. Todavia, a sua afirmação enquanto autora nem sempre foi um caminho facilitado ou, mais do que isso, creditado. Antes escrevia às escondidas, ao reconhecer que a sua condição enquanto mulher a impedia de ser levada a sério como escritora e pensadora. Fazia-o de forma discreta ou sob pseudónimo.

Prova disso é a recente investigação conduzida por Vanda Anastácio, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que publicou, em 2013, a obra “Uma Antologia Improvável – A Escrita de Mulheres”, revelando mais de mil mulheres escritoras em Portugal, entre os séculos XVI e XVIII. Eram elas freiras que viviam em conventos, damas da corte, princesas e, até, rainhas. Viveram no esquecimento durante muito (e demasiado) tempo.

Apesar disso, houve, em Portugal, a partir de 1900, várias figuras que, ao contrário daquelas anteriormente mencionadas, conseguiram – cada uma à sua maneira e com as devidas circunstâncias – trilhar este moroso percurso de reconhecimento no campo literário. De Florbela Espanca a Agustina Bessa-Luís, de Sophia de Mello Breyner Andresen às “Três Marias”, estas serviram, como tantas outras, de inspiração para as mais recentes gerações de escritoras da contemporaneidade. Remarcaram-se não apenas enquanto mulheres, mas também enquanto intelectuais e donas de uma cultura exacerbante e, claro, equiparável à dos homens. 

Florbela Espanca (1894 – 1930)

Fonte da imagem: feelingportugal.com

Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!
(“Loucura”, in “Sonetos”).

Os seus trinta e seis anos de vida foram curtos, mas muito intensos, tendo sido eles marcados por tragédias atrozes que inevitavelmente influenciaram os seus poemas. Nasceu Florbela de Alma Conceição Espanca, no dia 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa. O seu triste fado iniciaria logo no momento em que fora concebida: filha ilegítima, nascida de uma relação entre patrão e empregada. Foi criada pelo pai depois da morte da sua mãe, mas, por se tratar de uma relação extraconjugal, foi registada como sendo filha de pai incógnito. Foi apenas reconhecida pelo seu progenitor dezanove anos depois da morte da escritora. Da mesma relação, nasceu também o seu irmão cuja morte, em 1927, foi a gota de água para a decadência emocional de Espanca, a qual culminou no seu suicídio, três anos depois.

Conhecida pelos seus sonetos (diz-se influência de Antero de Quental), Florbela Espanca começou a escrever poesia aos oito anos e, ainda precocemente, já era notória a angústia que consumia a sua vida. A vida da autora foi marcada pelos abortos que sofreu, por acusações de maus-tratos e pelos amores e desamores que, juntamente com a partida violenta e inesperada do irmão, lhe trouxeram infelicidade, solidão e saudade. São precisamente esses os sentimentos que encontramos na sua obra e na sua escrita – maioritariamente poética, mas também prosaica -, a qual revela o mais íntimo de Florbela e onde se incluem: “Livro de Mágoas” (1919), “Livro de Soror Saudade” (1923), “As Máscaras do Destino”, “O Dominó Preto”, “Charneca em Flor” (todos publicados postumamente) e, ainda, “Diário do Último Ano”, escrito por Florbela durante o seu último ano de vida.

A sua escrita lamuriante é vincada pelo sofrimento e por um desejo de felicidade que lhe é impossível alcançar, mas também por um sensualismo muitas vezes erótico, como explícito nos poemas “Se tu viesses ver-me” e “Passeio ao Campo”, publicados em “Charneca em Flor”. Qualquer comparação com a escritora britânica Virginia Woolf é coincidência, mas inevitável: ambas tiveram vidas trágicas, sucumbindo à depressão, o que influenciou o trabalho literário de ambas. Além disso, as duas puseram termo à própria vida. Depois do desgosto de perder o irmão, Florbela desistiu de viver e suicidou-se, em 1930, com dois frascos de Veronal, precisamente no dia do seu 36.º aniversário, em Matosinhos, onde vivia com o terceiro marido. Noventa anos após o seu desaparecimento, é tida como a grande figura feminina das primeiras décadas da Literatura portuguesa do século XX.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 – 2004)

Fonte da imagem: Expresso

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”.
(“25 de Abril”, in “O Nome das Coisas”).

Nascida a 6 de novembro de 1919, na cidade do Porto, Sophia de Mello Breyner Andresen, de ascendência aristocrática, estudou Filosofia Clássica, na Universidade de Lisboa, mas acabou por não concluir o curso. Publicou os seus primeiros versos em 1940, em “Cadernos de Poesia”, lado a lado com Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira, Ruy Cinatti, Miguel Torga, Fernando Namora, entre outros. 

Sophia foi uma voz ativa contra o regime do Estado Novo e a sua luta antifascista torna-se bem notória na sua obra: no “Livro Sexto”, publicado em 1962, chama “velho abutre” a Salazar. Foi eleita deputada pelo Partido Socialista (PS) à Assembleia Constituinte, na sequência das eleições realizadas a 25 de abril de 1975, um ano depois da Revolução dos Cravos. Além de ter sido uma das dezanove deputadas inicialmente eleitas, foi a única mulher a presidir uma Comissão – a Comissão para a Redação do Preâmbulo da Constituição – cujo texto se mantém inalterado desde 1976. A frase “A Poesia está na rua”, acompanhada pelas pinturas Maria Helena Vieira da Silva, é da sua autoria, sendo um marco importante da iconografia associada à Revolução dos Cravos.

A escritora distinguiu-se pela sua atitude interventiva, aspeto que também se espelhou na sua própria obra, ainda que de forma mais subtil. Fez traduções e escreveu poemas, peças de teatro, contos, ensaios e também histórias infantis (que começou a escrever para os seus cinco filhos), entre as quais se destacam “A Menina do Mar” (1958), “A Fada Oriana” (1958), “O Cavaleiro da Dinamarca” (1964) e “Rapaz de Bronze” (1966), omnipresentes nas nossas infâncias. Depois da Assembleia Constituinte, não voltou a ser eleita deputada e, em 1982, referiu, numa entrevista publicada no Jornal de Letras, que, numa ocasião em que foi interpelada por algumas crianças, no Bairro Alto, estas lhe perguntaram se era a Sophia de Mello Breyner Andresen. Perante a sua anuidade, estas explicaram-lhe que a sua professora se encontrava a ler uma das suas histórias na aula e que tinham visto um retrato seu. A autora afirmou que, nesse momento, pensou que escrever era a sua verdadeira participação política.

Dona de uma escrita genuína e que faz o leitor viajar, foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa: o Prémio Camões, no ano de 1999. Partiu em 2004 e, uma vez considerada uma das mais proeminentes vozes da Literatura portuguesa, Sophia repousa no Panteão Nacional, ao lado de outras grandes figuras da nossa História e da nossa identidade.

As “Três Marias”

Fonte da imagem: Comunidade Cultura e Arte

“Frágeis são os homens deste país de nostalgias idênticas e medos e desânimos. Fragilidade em tentativas várias de disfarce: o desafiar touros em praças públicas, por exemplo, os carros de corridas e lutas corpo-a-corpo. Ó meu Portugal de machos a enganar impotência, cobridores, garanhões, tão maus amantes, tão apressados na cama, só atentos a mostrar a picha”.
(in “Novas Cartas Portuguesas”).

Maria Velho da Costa (1938 – 2020), Maria Teresa Horta (1937), Maria Isabel Barreno (1939 – 2016) – da esquerda para a direita, na fotografia – foram as “três Marias” que mudaram Portugal e que estavam muito além do tempo em que viviam. Ainda que tenham, todas elas, tido carreiras individuais notáveis, foi com a publicação das “Novas Cartas Portuguesas”, no ano de 1972, que ficaram nas bocas de Portugal e do mundo. Valeu-lhes tanto admiração, como perseguição: se os críticos de importantes publicações no estrangeiro a consideraram uma façanha inacreditável, em Portugal foram levadas a tribunal pelo Governo fascista.

A obra “Novas Cartas Portuguesas” é considerada, por muitos, o texto revolucionário do feminismo português do século XX. Incomodou as mentes mirradas e conservadoras da época, tornando-se num manifesto contra todas as formas de opressão e um símbolo contra o regime opressivo então em vigor. Além do valor político e cultural que apresenta, o seu conteúdo literário é igualmente elogiado, desde a sua publicação nos anos 70. Trata-se de um resultado único que combina elementos de narrativa com poesia, romance, ensaio, conto e carta. As autoras procuraram denunciar a sistemática discriminação associada à repressão do Estado Novo, principalmente no que dizia respeito à condição da mulher e ao patriarcado. 

Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram acusadas pelo Estado português de terem escrito um livro pornográfico e atentatório da moral pública e bons costumes. Felizmente, foram posteriormente absolvidas. A 4 de maio de 1974, o Diário de Lisboa escrevia: «As “Novas Cartas Portuguesas” passaram ontem de tabu a “best-seller”. O juíz Acácio Lopes Cardoso (…) declarou que “o livro não é pornográfico nem imoral”, justificando-o como obra-de-arte». Em relação às Marias, acrescentava que «em 1971, afinidades de formação e de projeto levaram-nas a escrever conjuntamente um livro que ataca globalmente a situação da mulher numa sociedade capitalista e machista, como a portuguesa ainda é». O livro havia sido censurado três dias após a sua publicação e, depois da absolvição das três escritoras, ficou finalmente disponível para todos os portugueses – continuando nós a ter o privilégio de, hoje, o ler e reler.

Em entrevista ao Noticiário Nacional da RTP, em 1974, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta definiram “Novas Cartas Portuguesas” como uma arma de libertação da mulher portuguesa, ao passo que Maria Velho da Costa a vê apenas como uma obra coletiva do grupo das três escritoras, o qual não se encontra necessariamente integrado num movimento feminista. A verdade é que, 49 após a sua publicação, a relíquia literária se mantém atual e influente. Em 2010, mereceu uma edição anotada por Ana Luísa Amaral, com o objetivo de fazer chegar o seu conteúdo até às mais recentes gerações.

Agustina Bessa-Luís (1922 – 2019)

Fonte da imagem: Bertrand

“Os tempos são ligeiros e nós pesados, porque nos sobram recordações. Quem se alimenta delas sofre e descuida as alegrias, mesmo que sejam rápidas e se escondam da nossa razão.”

Nasceu em Amarante, a 15 de outubro de 1922, onde passou a sua infância e adolescência. Agustina Bessa-Luís estreou-se como romancista em 1948, com “Mundo Fechado”. Ao longo da sua prestigiada carreira, publicou mais de meia centena de obras, participou em vários colóquios e encontros internacionais e realizou conferências em universidades por todo o mundo. Além disso, foi ainda diretora do diário ”O Primeiro de Janeiro” (Porto) e do Teatro Nacional de D. Maria II, membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social, da Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres (Paris), do conselho diretivo da Comunitá Europea degli Scrittori (Roma), da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa. Ufa!

A escritora afirmou-se como uma das mais importantes da ficção portuguesa e vários dos seus romances foram adaptados ao cinema pelo cineasta Manoel Oliveira. Tornou-se também autora de peças de teatro e de guiões para televisão. Em 1979, publicou a biografia de Florbela Espanca e, ao longo dos anos, foi distinguida com vários reconhecimentos, incluindo o Prémio Camões, em 2004.

Entre os seus títulos mais célebres, encontram-se “O Manto” (1966), “Canção diante de Uma Porta Fechada” (1966), “As Fúrias” (1977), “O Mosteiro” (1981) e “Os Meninos de Ouro” (1983). A escrita de Agustina é-lhe muito característica e distingue-a dos demais intervenientes na Literatura portuguesa, através do uso sistemático da ironia e de recursos expressivos. Em 2008, um AVC retirou-a da vida pública e afastou-a dos livros, ainda que tivesse passado grande parte da sua vida a escrever. Hoje, dois anos após a sua morte aos noventa e seis anos, é recordada pela sua garra, intelectualidade, ímpeto e mestria das Letras. A sua polivalência continua a servir de exemplo e de inspiração para todos.

Fonte da Imagem de Capa: obviousmag.org

Artigo revisto por Beatriz Campos

AUTORIA

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Uma pessoa de muitas paixões. Por isso, licenciou-se em Informação Turística, está a terminar o Mestrado em Jornalismo e quer tirar Doutoramento em História Contemporânea. A ideia de ter uma só carreira durante a vida toda aborrece-a. A Inês gosta de escrever, de concertos, dos The Beatles, de Itália, de conduzir e dos seus cães. Sonha em visitar, pelo menos uma vez, todos os países do mundo.