Opinião

Hipocondria

Imagino que muito poucos dos que estão a ler isto saibam o que é ansiedade. Não me refiro ao nervoso miudinho que todos temos quando estamos a meros momentos de receber o enunciado de um exame, nem ao nó na garganta que sentimos durante o começo de uma apresentação oral. Estou a falar de pânico. Do verdadeiro medo. Daquele terror interno que nos faz pensar: “Meu Deus, é desta. Falta pouco para darem as condolências à minha família. Nem sequer me despedi do meu gato, Jeremias.” É um sentimento de morte iminente, de que vêm aí algo imparável. É como manter a cabeça debaixo de água uns segundos a mais, depois do fôlego se ter esgotado. O medo passa de estado emocional a doença, quando perde a justificação. É a clássica definição de fobia como algo irracional. Temer pela vossa vida, quando estão numa jaula com um tigre, é normal – é o que é suposto acontecer (caso contrário, devem ser domadores do zoo, ou algo do género). Temer pela vossa vida, quando estão no conforto de vossa casa, ou num jardim a fazer um piquenique com amigos, já não o é. É neste momento que sabemos que temos um problema que precisa de ser tratado.

CRÓNICA - Hipocondria - João Carrilho (corpo do artigo)

A má imagem de nós, os lunáticos, advém de anos de desconhecimento e de ignorância populacional – remonta mesmo à idade das trevas, em que os esquizofrénicos eram queimados na fogueira, acusados de bruxaria. Eu não culpo estas pessoas na totalidade. Aliás, o cartório delas, segunda o meu prisma, está bastante vazio. Pensem no quão difícil é sentirem compaixão por algo que vos é virtualmente invisível. Não estamos a falar de um cancro, nem de uma bronquite, que podem ser observados de fora, com sinais que todos compreendemos. É absolutamente pessoal. Se dissermos a alguém que estamos deprimidos, um tipo comum diz que precisamos de nos animar e de nos divertir e de não passar tanto tempo em casa. Essa pessoa hipotética não tem culpa de não saber o que se passa na cabeça do outro. A dor mental (ou, se forem religiosos, julgo poderem dizer espiritual) é individual e impossível de ser demonstrada ao outro na sua totalidade. A ansiedade (assim como todas as doenças do foro psíquico) é algo que aos olhos de um espectador parece não existir, com a exceção do grupo restrito que já está familiarizado com alguns pequenos sinais externos indicativos daquilo que se passa na cabeça do outro: o ligeiro enrolar de cabelos, a necessidade de mexer num objeto com as mãos, o lábio que teima em não ficar quieto… Para uma pessoa desconhecedora, como eu outrora fui, estes tiques passam absolutamente despercebidos e, mesmo que sejam de tal intensidade que não permitam ser ignorados, podem ser descartados facilmente como excentricidade momentânea ou até como a maneira de ser natural do indivíduo.

A verdade é que temos, eu inclusive, de ser circenses. O malabarismo interno que exercemos requer uma coordenação milimétrica, se quisermos continuar a viver uma vida dita social normal. Temos de equilibrar a aparência de calma, com a escuta do que o outro está a dizer e, apenas em caso de absoluta necessidade, responder-lhe. Os ansiosos não querem que ninguém saiba que estão a sentir-se assim. Sermos o foco da atenção é a última coisa que queremos.

Há muitos ramos neste tronco nervoso: o das fobias específicas, do aracnofóbico, o stress pós-traumático, do ex-combatente de guerra, o medo generalizado, daquele indivíduo que anda numa correria física e mental, eternamente preocupado com o mais microscópico assunto, a ansiedade social do agorafóbico e a hipocondria do perpétuo “doente”. Como macaco, os galhos a que posso denominar de casa são estes dois últimos.

A hipocondria é algo absolutamente diferente do que o comum dos cidadãos pensa. Está muito longe de ser aquela figura triste do tipo dos anúncios das seguradoras de saúde. Aliás, toda a esfera das doenças mentais está permeada de estigmas, de generalizações e de estereótipos. Um tipo com pânico, por mais que os filmes insistam, não costuma pegar num saco de papel e arfar para dentro dele.
Adiante, um hipocondríaco é uma pessoa que apenas e somente interpreta mal os sinais que o seu corpo lhe transmite. A ansiedade por si mesma causa uma multitude de sintomas. Neste ponto, mesmo aqueles de vocês que não sofram com algo do género podem perfeitamente saber daquilo que falo. Ora vejamos – pensem nas dores de cabeça e de estômago, nas dores de costas e na fadiga que sentem quando estão “Under Pressure” com uma carga de exames arrebatadora. A única diferença entre nós e vocês é a forma como refletimos sobre as origens do problema. Vocês, os saudáveis, descartam estas maleitas como somente resultado do stress temporário, sendo então absolutamente irrelevantes. Nós, os insanos, interpretamos uma dor de cabeça como um potencial tumor. Uma dor de barriga como uma úlcera. Fadiga como uma crise de hipoglicemia. Temos este catastrofismo crónico impresso nos genes. Para além do mais, somos altamente teimosos! Se não for um tumor à primeira dor de cabeça, será à segunda, com certeza! E ai de quem diga que não o vai ser!
Reparem neste bonito circuito fechado. Estes sintomas, aparentemente inócuos, são causados por um estado de grande stress e ansiedade. Eu e os restantes “colegas de carteira” interpretamo-los como potenciais problemas de saúde graves, como já referi. O problema é que, por sua vez, se é que já devem ter adivinhado, isto leva a mais medo, levando a um coração galopante e a uma maior asfixia/falta de ar, e por aí adiante.

Há dois destinos neste comboio dos horrores: ou se atinge um clímax do medo, naquilo a que chamamos ataque de pânico, e o círculo termina, porque as energias e a adrenalina do corpo estão absolutamente esgotadas (tornando este processo fisicamente impossível de ser continuado) ou travamos esta “avalanche” com a racionalidade e com um tipo de pensamentos “barreira” aos automatismos da hipocondria. É um processo moroso e de difícil aprendizagem – imaginem terem de repetir 57 vezes na vossa cabeça: “Está tudo bem, João. Nada te vai acontecer. Já passaste por isto dezenas de vezes.”. Mas é esta a verdadeira e única alternativa. É o método que nos vai salvar deste tormento.

Não temos de “enfrentar os nossos medos”. Temos de provar que eles não existem. A razão é a caçadeira quando estamos com o tigre na jaula.
PS – Peço desculpa aos defensores dos direitos dos animais e aos vegetarianos por esta última analogia.

AUTORIA

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João Carrilho é a antítese de uma pessoa sã. Lunático, mas apaixonado, o jovem estudante de Jornalismo nasceu em 1991. Irreverente, frontal e pretensioso, é um consumidor voraz de cultura e um amante de quase todas as áreas do conhecimento humano. A paixão pela escrita levou-o ao estudo do Jornalismo, mas é na área da Sociologia que quer continuar os estudos.