Literatura

“Louise Glück. Quem?”

                No passado dia 8 de outubro, a Academia Sueca Alfred Nobel anunciou que Louise Glück era a feliz contemplada deste ano. O galardão foi-lhe atribuído pela sua “voz poética inconfundível que, com beleza austera, torna a existência individual universal”, justificou o corpo de jurados. Glück tem a particularidade de ser a primeira poeta norte-americana a vencer o prémio. Antes dela, Toni Morrison e Pearl S. Buck também foram distinguidas, mas no género do romance. É a 16ª mulher galardoada em 117 laureados, mas a terceira nos últimos seis anos, depois de Svetlana Alexievich e Olga Tokarczuk.

                Para a maioria das pessoas (autor deste artigo incluído), a reação ao prémio terá sido “Quem?”. No entanto, como assevera o crítico literário Pedro Mexia, essa ignorância advém do predomínio da popularidade dos romancistas ao longo das últimas décadas, lembrando de que antigamente nomes como Pablo Neruda ou Carlos Drummond de Andrade eram conhecidos do grande público. Segundo Mexia, para os apreciadores do nicho literário da poesia, Glück é uma autora que reúne consenso e está presente em todas as antologias críticas de poesia. O crítico, em declarações à Rádio Observador, lamentou ainda que “a época em que os leitores conheciam os grandes poetas contemporâneos já passou há muito.”.

                Louise Elisabeth Glück, nascida em Nova Iorque há 77 anos, poeta, ensaísta e professora de inglês na Universidade de Yale desde 2004. Reside em Cambridge, Massachusetts, e pretende, segundo afirmou ao New York Times como reação ao prémio, usar o milhão de euros de prémio para comprar uma casa nova. Iniciou a sua carreira literária em 1968 com o volume Firstborn. Seguiram-se doze livros de poesia e alguns ensaios sobre poesia.

                Glück não é conhecida pelo grande público, mas não é o primeiro prémio de renome que ganha: já venceu, entre outros, um Pulitzer (com The Wild Iris) em 1992, um Poet Laureate of United States em 2004, um National Book Award (com Faithful and Virtuous Night) em 2014 e, em 2015, recebeu do presidente Barack Obama a Medalha Nacional de Artes e Humanidades pela sua obra. The Triunph of Aquiles (1985), Ararat (1990), Vita Nova (1999), Averno (2006) e o poema de seis partes “October” (2004) são outros trabalhos que receberam nomeações ou prémios literários.

                Poeta marcadamente autobiográfica, é conhecida pela grande intensidade emocional, austeridade, precisão e lucidez na linguagem (sem grandes ornamentos estéticos e recorrendo por vezes ao humor mordaz) e por glosar temas como o mito, a história e a natureza, como forma de mediar as experiências humanas. Trabalha as relações entre o trauma, o desejo, a tristeza e o isolamento, cruzando com experiências do foro pessoal. É uma cultora e conhecedora profunda da cultura grega e romana e revisita esse imaginário em diálogo com a contemporaneidade – concretamente com os mitos de Dido, Perséfone, Eurídice, Telémaco e Aquiles. Um outro recurso muito presente na sua obra é a multiplicação em várias vozes poéticas sob a forma de elementos da natureza – uma flor em diálogo com um jardineiro, por exemplo.

                Sobre o livro Ararat (escrito na sequência da morte do seu pai), o New York Times escreveu em 2012: “O livro mais brutal e carregado de angústia da poesia americana publicada nos últimos 25 anos.”. Um livro que catapultou Glück para algum reconhecimento e que trabalha os tópicos da vida familiar com o tom austero e depurado que a caracteriza.

                Formalmente, a poesia de Glück raramente tem rima. Para conferir ritmo, a autora utiliza outros recursos, como a anáfora ou o encavalgamento. Os críticos não são unânimes, mas a maioria aponta o estilo de Glück para a esfera do confessionalismo que nos recorda imediatamente Sylvia Plath. De Plath recupera o tom alienatório e depressivo. “Há uma ligação muito forte [na sua escrita] entre o lado, digamos, quotidiano e doméstico e depois uma dimensão mitológica.”, aponta Pedro Mexia.

                Tematicamente, o trauma (recordar que a autora lutou durante sete anos contra a anorexia nervosa, na adolescência), a morte, a rejeição e as relações amorosas falhadas (Glück lidou com o problema do divórcio) são alguns dos assuntos mais presentes. O académico Daniel Morris sugere que, mesmo que um poema de Glück nos pareça alegre ou idílico, lhe subjaz “a consciência da morte, a perda da inocência”. A natureza é também uma grande temática. A norte-americana encontra vozes emocionais e inteligentes na natureza (especialmente nas flores), fazendo com que esta adquira uma vitalidade que recria e revisita a tradição da poesia romântica – o que nos faz recordar imediatamente nomes como Percy Shelley, William Blake ou William Wordsworth, do início do século XIX.

                Helen Vendler, crítica literária e professora na Universidade de Harvard, aponta a Glück uma rara capacidade para conjugar harmoniosamente um registo confessional e intelectual. Por fim, outra característica bastante apontada pelos críticos é a ausência de filiações na sua poesia. Daniel Morris afirma que “Glück evade-se de temas como a identificação étnica, religiosa ou de género”. Glück rejeita que a identidade política possa ser vista como critério valorativo das obras de arte, preferindo o estatuto de iconoclasta de pendor formal. Segundo Mário Avelar, catedrático de Estudos Ingleses e Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, “a poesia de Glück afirma-se como uma voz única num tempo em que as agendas políticas tendem a banalizar a expressão poética”. Este aspeto confere à entrega deste Nobel um quadro mais pacífico do que o habitual, até porque, como acabamos de perceber, os poetas contemporâneos, não sendo muito conhecidos, não têm anticorpos associados nem material para os polemistas capitalizarem. Recorde-se de que, em 2019, o prémio foi atribuído ao austríaco Peter Handke, autor conhecido pela simpatia pelo estadista Slobodan Milošević (inclusivamente discursou no seu funeral). Contextualizando, Milošević presidiu a Sérvia/Jugoslávia entre 1989 e 2000 e foi preso pelo Tribunal Internacional por crimes de guerra e crimes contra a humanidade na sequência das guerras na Croácia, Bósnia e Kosovo.

                Entre as maiores influências da autora estão a psicanálise de Sigmund Freud, a mitologia grega e romana, Rainer Maria Rilke, John Keats e, sobretudo, Emily Dickinson e Sylvia Plath, pelo tom confessional carregado de emocionalidade, lucidez e desolação.

                Infelizmente, Glück é uma autora pouco traduzida em Portugal. As suas obras não estão publicadas no país – apenas poemas soltos em revistas e coletâneas de poesia. Há alguns trabalhos recentes no Brasil a tentar dar a conhecer a autora. Por cá, temos também alguns exercícios mais de âmbito académico, como os do poeta e tradutor Rui Pires Cabral.

                A ESCS Magazine deixa-te quatro poemas – três traduzidos e um original – para aguçar o apetite e na expectativa de que, a breve termo, devido ao mediatismo que um Nobel confere, tenhamos à disposição nas nossas livrarias algumas das obras de Louise Glück com tradução portuguesa e com a certeza de que estamos perante uma das maiores vozes da poesia do nosso tempo.

Snowdrops    

I did not expect to survive,
earth suppressing me. I didn’t expect
to waken again, to feel
in damp earth my body
able to respond again, remembering
after so long how to open again
in the cold light
of earliest spring –
afraid, yes, but among you again
crying yes risk joy
in the raw wind of the new world.

                                                                In The Wild Iris (1992)

O Poder de Circe

Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,

sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.

*Poema publicado originalmente na coletânea Meadowlands (1996), com o título “Circe’s Power”. Editado em Portugal na antologia Rosa do Mundo. 2001 Poemas Para o Futuro (2001), da Assírio & Alvim, numa tradução de José Alberto Oliveira.

ERVA-DE-BRUXAUma coisa malvinda aparece no mundoa clamar desordem, desordem – Se me odeias assim tantonão te…

Publicado por O Poema Ensina a Cair – Ainda em Quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A poeta lembra-nos de que literatura não é apenas ficção, por muito que o conceito seja mais viável comercialmente. A poesia, por quem a escreve bem, é bela e simples, não devendo ser encarada como algo intrincado, ininteligível ou hermético. Este ano, a Academia fez questão de relembrar o grande público disso. Boas leituras

Fonte da imagem de capa: CWBN Live

Artigo revisto por Ana Rita Sebastião

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.