Literatura

O Dia Em Que Deus Pecou

Um dia, enquanto passeava pelas nuvens, desequilibrei-me e caí. Algum tempo depois acordei num banco de jardim. Por segundos, assustei-me. Olhei em volta e percebi que estava em Portugal. Depois de reconhecer o estado de espírito dos habitantes deste país em crise, tentei voltar para o meu reino, bem acima das nuvens. Sem resultado. Portugal devia ter-me bloqueado os poderes.

Sentia fome mas não tinha comida nem dinheiro e, sem poderes, nada podia fazer. Procurei uma livraria.

As pessoas lêem menos e deve ter sido por isso que demorei tanto a encontrar uma livraria. Entrei e fiquei petrificado. Logo à entrada, com grande destaque, estava um livro de um rapaz do Norte de Portugal: “Eu sou Deus”. Até senti tonturas. Mas como é que alguém escrevia um livro a dizer que era Deus quando eu é que sou Deus? Queres ver que os Homens têm cada vez maior tendência para pecar? Senti a rapariga que estava atrás do balcão olhar para mim, e pensou, sem qualquer problema, “quem é aquele totó?”. Comecei a sentir-me ligeiramente ofendido antes de me lembrar de que ela não sabia quem eu era. A minha forma humana permitia-me andar entre os comuns dos mortais sem ser reconhecido.

Dirigi-me a ela, que me olhava curiosa.

— Bom dia. Tem a Bíblia? — perguntei, sabendo que a resposta seria negativa assim que terminei a pergunta.

— Não. — ela notou a minha desilusão. — Peço imensa desculpa. Mas temos outros livros sobre religião.

Encolhi os ombros, agradeci e virei costas. Como é que uma livraria não tem a Bíblia?

Saí de volta à avenida. Estava calor e nem uma brisa. As pessoas passavam por mim cheias de pressa, sem se darem ao trabalho de apreciarem o local onde estavam.

Senti fome. Mas sem comida e sem dinheiro não sabia como podia comer. Tentei abstrair-me da fome e segui a multidão. Quando pensava que estava a conseguir controlar a fome, cruzei-me com uma jovem que levava uma enorme fatia de bolo na mão. Não reconheci aquela sensação que se apoderava de mim. Pelo menos, não de imediato. Depois percebi que se tratava de inveja. Senti-me mal comigo mesmo. Um dos sete pecados mortais. Eu estava a pecar! Novamente uma forte tontura. Fugi para a igreja mais próxima, onde rezei avidamente durante uma hora.

Quando saí ainda sentia fome. Não sabia se iria aguentar muito mais tempo sem comer. Foi então que fiz o impensável e pequei novamente. Sentia-me tão mal comigo ao fazer isto mas, ao mesmo tempo, tinha de pensar também em mim e na minha sobrevivência.

Só queria comer.

Tinha de comer.

Então voltei à multidão. Conseguia saber o que cada um pensava: dinheiro, desemprego, filhos, casamento, traições, sexo, drogas. Não sabia como reagir a tudo aquilo mas sabia a quem podia recorrer para poder conseguir algum dinheiro. Aproximei-me e, como se fosse um ladrão profissional, consegui tirar a carteira de dentro da mala da senhora que trabalhava no Ministério. Naquele momento, eu podia ser o Robin dos Bosques: roubar aos que roubam os outros.

Tinha o dinheiro. Faltava-me a comida. Entrei no primeiro café e pedi uma fatia do bolo mais apetitoso que vi e um copo de sumo. Sentei-me a saborear o meu lanche. Quando estava quase a terminar o bolo, apercebi-me do que tinha feito.

Tinha cobiçado o que os outros tinham. Tinha sucumbido à gula. Tinha roubado. Tinha julgado as pessoas. Novamente uma tontura. Afinal não era assim tão difícil para um ser humano pecar. Nunca tinha pensado nisso mas agora que eu tinha pecado já conseguia ver além de mim. Se eu, Deus, sucumbia tão facilmente aos pecados, como é que uma pessoa normal não haveria de sucumbir facilmente? Outra tontura. Era sempre tão mais fácil ver as situações de fora. Eu tinha pecado. Deus pecara.

Fechei os olhos para tentar absorver a situação e perceber o que deveria fazer. Quando os abri estava novamente nas nuvens. Tinha à minha frente o meu filho, que me sorriu.

— Filho, pequei. — confessei-lhe, envergonhado.

— Eu sei, Pai. Não há problema. Foi por isso que foste parar lá em baixo. Tinhas de perceber como é fácil pecar e como há vários motivos para pecar. — sabia que ele estava a ser totalmente sincero.

— Tenho de rever os critérios para condenar pessoas, não é?

O meu filho voltou a sorrir. Sabia que ele concordava e que era mesmo esse o objectivo dele. Sorri de volta por ele me ter ensinado algo que eu já devia saber. Este foi o dia em que eu pequei. E o dia em que me perdoei.

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