Opinião

O Rei Tirano

O que vos trago hoje não é, ao contrário do que se possa supor à primeira vista, uma lição de história, nem tão pouco uma metáfora arrojadamente inserida num comentário político. Refiro-me a um rei, sim, ou pelo menos, a algo que possui tal denominação – o futebol. De forma justa? É isso que questiono aqui.

O Rei Tirano - Frederico Mendonça (corpo do artigo 1)

Não é de hoje, não é de ontem, nem tão pouco mudará nos próximos tempos – se alguma vez -, mas não deixa de ser um assunto que carece de alguma reflexão. Em várias situações da vida, somos induzidos a sobrevalorizar determinadas coisas, e a subvalorizar outras. O futebol, como outros tantos temas que pautam um país claramente atrasado (que ao menos vai dando trabalho aos cronistas), é um autêntico dogma, poderoso e manipulador, uma religião e uma arma política, para quem a sabe utilizar. No Brasil, não há dinheiro para a educação nem para os transportes, mas houve dinheiro para a “Copa”. Por cá, facilmente se sucederia o mesmo, se ainda houvesse dinheiro para estádios, isto é. Não precisamos, aliás, de recuar muito para encontrar uma situação semelhante. Olhando por alto para uma notícia publicada a 28 de Outubro de 2010 no site do jornal desportivo Record, refere-se que o director geral do Euro2004, António Laranjo, havia recordado que foram investidos 665 milhões de euros nos 10 estádios utilizados na competição, com uma comparticipação efectiva do Estado de 104 milhões, números que, deduzo, não contaram com os exorbitantes custos de manutenção. Que utilidade tem agora o Estádio de Leiria? Quem lhe pega? Poderíamos ainda destacar a título de exemplo o Municipal de Aveiro e o Estádio do Algarve. Mas isto de Portugal gastar o que não tem onde não deve já não surpreende ninguém. Outra coisa que também já não causa estranheza a ninguém é a nossa estranha forma de menosprezar os nossos insucessos – li, na já referida notícia do jornal Record, que o António Laranjo não só referiu que o dinheiro foi bem investido, como ainda se dignou a comparar o investimento feito com o realizado em outros países, como a Alemanha e Inglaterra – passo a citar: “O director geral do Euro’2004 revelou que os 10 estádios portugueses custaram 665 milhões de euros (376 mil lugares), enquanto o novo Wembley (90 mil lugares), em Inglaterra, custou 510 milhões”. Visto assim, realmente, foi um excelente negócio, se nos tentarmos abstrair do facto de que o campeonato português não gera dinheiro nenhum, não tem visibilidade quase nenhuma, e muito menos tem adeptos para encher os ditos estádios – por mais chocante e inacreditável que isto pareça, a 4ª divisão inglesa enche mais estádios que a nossa primeira divisão.
Mas isto já são tudo detalhes que apenas nos vão distrair do tópico que vos queria trazer inicialmente, e até porque não precisamos de recuar até 2004 para encontrar semelhantes histórias no nosso falido e esquecido país, detalhes que ainda assim reforçam ainda mais o dilema.

O Rei Tirano - Frederico Mendonça (corpo do artigo 2)
Estádio do Leiria, neste momento sem utilização

Ora, se realmente não temos um campeonato assim tão interessante, porque é que só se fala em futebol? Porque é que as notícias sobre futebol ocupam tanto tempo nos noticiários? Como fã da modalidade, coloco-me na pele de outras pessoas (e, porque não, na minha, em grande parte das vezes) e interrogo-me: O que é que me interessa saber que jogadores fizeram o treino hoje e quais estão lesionados? Com um pouco de bom senso, chegar-se-ia à conclusão de que são detalhes tão insignificantes para as nossas vidas que não deveriam sequer passar no telejornal – e refiro-me mesmo a estes detalhes, e não por exemplo ao resumo de um jogo grande ou uma notícia importante no mundo do futebol. Na verdade, quem está realmente interessado tem uma grande quantidade de jornais desportivos e blogs onde se informar. Porque não noticiar concertos? Porque não noticiar peças de teatro? Porque não noticiar outras modalidades? Porque não move dinheiro, e o futebol tem, hoje em dia, tanto de desporto como de negócio, e Portugal não escapa ao girar do planeta, não escapa à lógica enraizada nas sociedades modernas, e os interesses falam mais alto do que tudo o resto.

O Rei Tirano - Frederico Mendonça (corpo do artigo 3)

O futebol, pela sua importância, já é suficientemente venenoso no sentido de que é capaz de distrair a população de outras questões de maior relevância. Mas o que mais me incomoda acaba por ser a forma como é utilizado para manipular as pessoas. Deixou-me completamente revoltado a isenção que António Costa propôs que se fizesse ao Benfica, no valor de 2 milhões, isto porque um clube de tão grande dimensão não deverá ter esses 2 milhões certamente. Não me interessa as vantagens que teriam face a outros rivais, não para esta questão, mas interessa-me saber quem pagaria esses dois milhões, interessa-me saber até que ponto os benfiquistas compactuariam com tal coisa pelo sucesso do clube, e interessa-me acima de tudo fazer uma breve análise a esta medida: mesmo que não se venha a realizar, ao tentar facilitar a vida ao dito clube, está a conquistar a simpatia, e consequentemente votos, daqueles adeptos que constituem, por óbvia coincidência, a maioria dos portugueses. Mas é assim, este mundo está cheio de escândalos e interesses. Ainda recentemente, a possibilidade de haver um Mundial de futebol no Qatar, país de elevada tradição futebolística, chocou os fãs da modalidade, e um artigo não basta para enumerar tantos outros episódios.

O Rei Tirano - Frederico Mendonça (corpo do artigo 4)
João Costa e Joana Castelão

É triste noticiar-se as conferências de José Mourinho, e os golos de Cristiano Ronaldo, como se fossem a única coisa de bom que Portugal tem. Mais triste, ir a Espanha e perguntar quase que como instantaneamente “Te gusta Cristiano Ronaldo?” e sim, não falta muito para que seja a única coisa pela qual somos reconhecidos, esse mesmo jogador que é constantemente assobiado em territórios vizinhos e que por terras lusas é criticado dia sim dia não – mas que vem sempre a calhar quando não há mais nada a dizer sobre este tristonho e fútil país, que já foi, outrora, um palco de grandes obras, uma nau de grandes descobertas, um país de vivas cores e vivo Fado. Quem nos vê assim, a exaltar por quatro cantos conquistas que não são do colectivo, percebe facilmente que faz tempo que não sabemos o que é ser um grande país.
Parecendo que não, Portugal tem alcançado diversos títulos em diversas modalidades ao longo dos anos, títulos esses que passam ao lado da maioria das pessoas que estão demasiado distraídas com as novas namoradas do Cristiano Ronaldo, e isto sem lhe tirar qualquer mérito pelo grande atleta e símbolo de Portugal que se tornou. Nélson Évora é o Herói do momento, mas outros tantos fazem boa figura e não são suficientemente noticiados, como é o caso do grande ciclista Rui Costa. Ainda este mês, o atirador João Costa, após a sua conquista na variante de Air 50 Pistol de tiro de ar comprimido (em dupla com Joana Castelão), desabafou com um pouco de humor, ao Diário de Notícias, as seguintes palavras: “Estou muito desiludido com o nosso Presidente da República, que não se dignou a felicitar-nos! Já em 2011 eu tinha sido campeão da Europa e adormeci à espera que o telefone tocasse”. Ser atleta em Portugal é mesmo de “dar um tiro nos cornos”- perdoem-me a expressão que achei jogar bem com a referida notícia. Não que Portugal mereça um termo melhor, não enquanto não deixar de ser um país pequeno, sonhando ser grande. Quem perde com isto? Os atletas de todos os pequenos clubes e associações que não dispõem de apoios financeiros nem de incentivos morais para lutarem pelos seus objectivos. Por mais trabalhosas que sejam determinadas modalidades, nunca terão a visibilidade do futebol, porque não são um espectáculo, não no sentido em que levam pessoas aos estádios, não no sentido em que enchem telejornais, não no sentido em que não são debatidos de forma fanática nos cafés, não no sentido em que não rendem dinheiro.
E, por isso, sim, por mim tirava a coroa ao futebol, que só é rei porque ninguém se opõe, e que, sendo um desporto que sigo assiduamente, não é o mais interessante de assistir.

AUTORIA

+ artigos