Literatura

Recensão “Jesus Cristo Bebia Cerveja”

 

Amor e uma boa cerveja

Jesus Cristo Bebia Cerveja

Afonso Cruz

Alfaguara

 

 

Jesus Cristo Bebia Cerveja começa a triunfar logo no título. Além de curioso, o título deste romance, que é o oitavo livro publicado por Afonso Cruz, desperta logo o interesse e deixa uma ânsia enorme no leitor, ficando este impaciente por descobrir o que as páginas desta obra têm para oferecer e, claro, ansioso em compreender o significado, real, de um título tão sugestivo. Mais do que religião, há também a morte, há o sacrifício, há questões que vão muito além do eu pessoal das personagens e há, claro, o amor.

Desengane-se quem pensa que esta é uma obra fácil de compreender com uma leitura superficial e desinteressada. É preciso entender os pequenos detalhes, que vão fazer toda a diferença na forma como as personagens agem e, também, no desenrolar da acção. E, ao entender os pequenos detalhes, é preciso ir muito além deles. É aí que reside a dificuldade de compreensão da obra: lê-se facilmente mas levanta tantas questões pela forma como as personagens vêem o mundo, que se torna necessário ter algum tempo para ler e reflectir sobre aquilo que se lê.

A apresentação alternada de personagens que parecem nada ter a ver com a história principal, centrada em Rosae na avó, também dificulta, à partida, a compreensão da história, mas, com o avançar da mesma, tudo faz sentido e percebe-se como cada personagem teve um papel fundamental no desenrolar da acção.

A linguagem usada ao longo da obra é de fácil compreensão. Alterna entre discursos mais elaborados e um pouco formais nos diálogos entre o professor Borjae Miss Whitmore e o discurso mais popular, o “calão”, que é usado por muitas personagens: “A puta da lei é sagrada” (pág. 31).

No entanto, o que mais fascina não é a linguagem. Os pormenores do desenrolar da acção que levará Rosa, Antónia e o professor Borjaà falsa Jerusalém são tão bem construídos como as personalidades das personagens, que deixam o leitor a querer saber mais e mais, pois, mesmo com alguma irrealidade nas descrições das personagens, e mesmo na forma como a obra se vai desenvolvendo, aquele esforço feito para tornar real o sonho de Antóniadá um ar de “fantástico” à obra de Afonso Cruz e deixa passar para o leitor a forte prova de amor que ali acontece.

Mas, claro, há detalhes que excedem completamente a ideia do irreal. Quando se pensa, por exemplo, em Miss Whitmore, que dorme dentro de uma baleia, o limite da imaginação ultrapassa totalmente a realidade. Nunca um leitor poderia identificar semelhanças com a realidade neste caso, pois é quase impensável que haja alguém, por muito rico que seja, que durma dentro de um qualquer ser marinho.

Há, também, pormenores que constroem muito bem as personagens e que dão, desde logo, uma nova leitura e uma nova percepção ao leitor em relação às personagens, e que também deixa algumas críticas subtis à forma como se vive em Portugal. A simplicidade de Rosa, que chupa pequenas pedras como rebuçados” (pág. 50), e a desertificação do interior do país, levando Antóniaa dizer que “O Alentejo é um cemitério” (pág. 112).

Entre a preparação da visita de Antóniaà Terra Santa, o seu maior sonho, e o desenvolver da relação de Rosa com o professor Borja,tudo acaba numa história que se podia resumir no velho ditado: “Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé“. É a partir deste sonho de Antónia que todo a narrativa se desenvolve com a ideia de transformar uma pequena aldeia do Alentejo na Terra Santa. São estes esforços feitos para levar a avó de Rosaà falsa Jerusalém que dão mais vida e alguma comédia a um romance que tantas questões filosóficas levanta.

O fim, esse, é surpreendente. Ainda mais surpreendente do que toda a história contada até aí: é impossível dizer que se via aquele fim chegar, mesmo que talvez possa deixar alguns desiludidos. O melhor, claro, é a surpresa e essa é enorme para todos.

É para chegar ao fim e ser surpreendido a cada página que o leitor continua a ler: há uma ânsia em ser surpreendido de uma forma tão boa, como Afonso Cruz consegue fazê-lo e como vai habituando o leitor ao longo de toda a obra.

O amor é parte fundamental de Jesus Cristo Bebia Cerveja, tanto na racionalidade como na irracionalidade. Mas, afinal, seria amor se não houvesse uma dose de irracionalidade? E o amor complementa-se bem com uma boa cerveja, bebida dos pobres, e, como explica o professor Borja,bebida de Jesus Cristo. Afinal, tal como explica o professor, O que se bebia no espaço geográfico em que Cristo habitava era cerveja. O vinho era uma bebida dos romanos, dos invasores. Cristo não ia beber a bebida dos ricos…mas a dos pobres, das putos e dos pecadores. Isso é que é a cerveja, um símbolo do povo”. (pág. 214)

Mas o grande ponto comum entre o amor e a cerveja que esta obra nos mostra é o da nova vida: “A cerveja é a ressurreição dos grãos, a nova vida” (pág. 214)e o amor pode, certamente, também proporcionar uma nova vida. E, claro, o tema central deste livro poderia muito bem ser cantado pelos The Beatles: Tudo o que é preciso é amor. Amor e uma boa cerveja.

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