Editorias, Opinião

Surrealismo musical

Este artigo é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico

Com um novo álbum e a cumprir 75 primaveras, acho que está na hora de celebrarmos, para variar, em vida, a carreira daquele que muitos consideram ser o melhor músico de sempre – Bob Dylan. Um indubitável génio lírico, multifacetado e dinâmico, capaz de suavidade e acidez, único e irreplicável. Nem o grande Neil Young, por mais que tente, consegue sair da sua sombra.

Mas, por mais que deseje glorificar a vida do cantautor, esse não é o objetivo desta crónica. Bob Dylan é o arquétipo de uma tendência musical que infeta esta forma de arte, pelo menos desde o final da década de 60 – cada vez mais a lírica tende para um niilismo, incapaz de produzir qualquer sentido minimamente objetivo. Quando Dylan declarava em 1964 que “The Times They Are A-Changing”, apenas reproduzia o sentimento à época – um fervor antiguerra das camadas jovens e uma vontade visceral de mudança na sociedade. É algo marcado nos cantores ditos de protesto, como os portugueses Zeca Afonso ou José Mário Branco. Um excelente equilíbrio entre subjetividade e objetividade lírica, formando uma ideia coerente mas propícia ao debate acerca do significado das ditas entrelinhas.

Há óbvias exceções pós-60, é claro. No que toca a géneros inteiros, o hip-hop também refletia nas suas letras um profundo contradiscurso ao racismo institucional, que permeava os anos 80 e 90.

Mas as coisas evoluíram e Dylan também. Com Blonde on Blonde o surrealismo lírico tornou-se rei. Visions of Johanna ou Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again estão repletas de imagens absurdas e inalcançáveis – ninguém sem ser Dylan consegue ter a mais pálida ideia do que aquelas letras querem dizer.

Talvez pela letargia social do séc. XXI, a grande fatia atual da música, seja ela mainstream ou alternativa, não passa de um aglomerado de frases bonitas, cujo significado escapa a todos. Os Beatles gozaram com esta ideia em I am the Walrus, uma canção propositadamente abstrata, feita de forma a irritar a crítica musical à época.

Pode-se dizer então que sou algo conservador no que toca ao artístico, qualquer que seja o seu veículo emocional – James Joyce não me diz nada e muito menos Marcel Duchamp.

Não que este estilo de fazer arte me seja sempre indiferente. Leonard Cohen conseguiu proporcionar imagens com uma estética tão impressionante que a coerência da letra se tornou secundária.

Em vez de rifarmos uma data de clichés líricos de um chapéu, desejava que pudéssemos novamente criar profundas reflexões sobre aquilo que nos rodeia e os problemas sociais e económicos que recheiam o planeta. Não que estas temáticas não sejam abordadas por alguns artistas contemporâneos – Kendrick Lamar, por exemplo, é uma boa exceção. Mas não chega.

Voltemo-nos para uma música mais mimética, por favor. Estou farto de tentar forçar uma interpretação a algo que provavelmente não a tem.

A subjetividade é como o sal – se faltar na sua totalidade estamos perante um prato insosso e meio estupidificante, mas se estiver demasiado presente este torna-se numa intolerável forma de pseudo-alimentação.

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