“Vivo em desassossego, escrevo para desassossegar”
Há 100 anos, na aldeia de Azinhaga, vinha ao mundo o primeiro e, até ao momento, único Prémio Nobel da Literatura português. Dispensando extensas introduções, de quem se fala é o escritor José Saramago, expoente máximo da literatura em Portugal.
O centenário será, como seria de esperar, objeto de grande celebração. O centenário propriamente dito assinala-se no dia 16 de novembro deste ano. Porém, as celebrações tiveram início a 16 de novembro de 2021. No seu todo, será um ano cheio de oportunidades para reavivar a memória e consolidar a presença do escritor na História e na cultura portuguesas.
Apesar de um conjunto de entidades preparar o programa para o centenário, a Fundação Saramago é a mediadora deste projeto, que se encontra dividido em quatro eixos: a biografia do escritor, a leitura, as publicações e, por último, as reuniões académicas.
A diversidade das manifestações artísticas que se irão realizar promete dar conta da riqueza e da complexidade da obra de Saramago em áreas como as artes visuais, o cinema, a dança, a música, a ópera e o teatro. Já a parte relativa às leituras centenárias revela-se importantíssima, pois é nos leitores jovens e na escola que tudo começa.
Para os alunos portugueses que frequentam o 12.º ano de escolaridade, é apresentada a obra O Ano da Morte de Ricardo Reis. No entanto, muitos são aqueles que acabam por olhar para a escrita de Saramago como nada mais do que um plano curricular que lhes é imposto. Apesar desta atitude inicial, a verdade é que a leitura nas escolas é um ponto de partida para suscitar o interesse pelas restantes obras do autor. Saramago tem livros para todas as idades e para todos os gostos. Daí que, mesmo que o leitor seja pouco dedicado, enveredar com vontade e atenção por uma das suas obras é remédio santo para nos começarmos a aperceber do seu valor intrínseco. Carlos Reis, comissário das comemorações do centenário, refere em entrevista ao Jornal de Letras que “o que se afirma é a atitude de um escritor que não se acomodou, que viveu a literatura como interpelação do mundo e dos homens; e que foi capaz de provocar instituições e convenções. Estes são desafios que continuam vivos hoje e que assim devem continuar no futuro”.
Obras menos conhecidas
Querendo fugir ao habitual, aqui fica um olhar sobre algumas das obras menos conhecidas de José Saramago.
A Caverna
Publicado em 2000, A Caverna é mais um dos livros de José Saramago que aborda, tal como Ensaio Sobre a Cegueira e Todos os Nomes, uma visão muito específica da sociedade atual. Através de várias personagens, Saramago explora a forma como a economia tradicional e local foi impactada pelo surgimento do capitalismo. É a partir de uma família de oleiros e de um centro comercial gigantesco que acabou de chegar à cidade que o escritor irá delinear a história da morte da pequena olaria.
Através de comparações ao mito da caverna de Platão, é explorada a temática da desumanização, o nosso modo de viver e as consequências que este tem sobre a mentalidade humana.
Um mundo em que as pessoas não são mais do que as suas profissões. Profissões que rapidamente se podem tornar inúteis e extinguir-se, como também se tem vindo a extinguir a fauna, a flora, os dialetos, as tradições, os rituais, os sentimentos, as opiniões, etc.
Claraboia
O romance Claraboia, assinado com o pseudónimo Honorato, decorre na Lisboa do séc. XX, mais precisamente num prédio onde vivem seis famílias. Ao longo destas páginas, iremos penetrar na vida destas famílias que habitam uma zona popular da cidade e que fazem parte da burguesia lisboeta. José Saramago disse, inclusivamente, sobre esta obra: “Claraboia é a história de um prédio com seis inquilinos sucessivamente envolvidos num enredo. Acho que o livro não está mal construído. Enfim, é um livro também ingénuo, mas que, tanto quanto me recordo, tem coisas que já têm que ver com o meu modo de ser”.
A Noite
A Noite é a primeira obra dramática de José Saramago. A ação da peça passa-se na noite de 24 para 25 de abril de 1974, num jornal em Lisboa, onde administradores e redatores vão entrar em conflito. A ironia parece marcar esta obra, sendo que as primeiras palavras do autor são: “Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente”. Além disso, podemos adiantar que a obra foi dedicada a Luzia Maria Martins, tendo sido a dramaturga a convencer Saramago a construir uma peça.
Alabardas
A 18 de junho de 2010, aquando do seu falecimento, Saramago tinha deixado cerca de 30 páginas redigidas, que seriam o início do seu próximo romance.
Alabardas conta-nos a história de Artur Paz Semedo, um homem fascinado por peças de artilharia, empregado numa fábrica de armamento, que leva a cabo uma investigação na sua própria empresa. Esta obra permite-nos refletir sobre o lado mais sujo da política internacional, um mundo de interesses ocultos que subjaz à maior parte dos conflitos bélicos do século XX.
Dois outros textos – de Fernando Gómez Aguilera e Roberto Saviano – comentam as últimas palavras do Prémio Nobel português, cuja força é sublinhada nas ilustrações de um outro Nobel, Günter Grass.
O Lagarto
O Lagarto é um conto breve incluído em A Bagagem do Viajante (1973), volume que reúne as crónicas escritas por José Saramago para o diário A Capital e para o semanário Jornal do Fundão, entre 1971 e 1972.
A história narra o aparecimento de um misterioso lagarto no Chiado, surpreendendo transeuntes e mobilizando os bombeiros, o exército e a aviação. Uma fábula que promete ser capaz de cativar leitores de todas as idades. Esta edição conta ainda com as magníficas xilogravuras do mestre J. Borges.
Terra do Pecado
Terra do Pecado saiu em 1947 e foi o primeiro romance publicado por José Saramago. 30 anos antes da publicação da obra Levantado do Chão, foi, durante meio século, esquecido e rejeitado. Voltou a reintegrar a sua obra no ano de 1990.
Em entrevista ao jornal O Independente, em 17 de maio de 1991, dizia o escritor sobre este seu primeiro romance: “Escrevi o meu primeiro livro aos 25 anos. Chamava-se A Viúva. Foi publicado pela Minerva, mas o editor achou que A Viúva não era um título comercial e sugeriu que se chamasse Terra do Pecado. Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu.
De pecados sabia muito pouco e, embora a história comporte alguma atividade pecaminosa, não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não o incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer. Mas como o título não foi meu e detesto aquele título…. Acho que é por isso que resisto a aceitá-lo“.
Parte das comemorações
Como parte da celebração do centenário, muitas serão as obras publicadas ao longo deste ano. Aqui serão apresentadas aquelas que já podemos encontrar nas estantes das livrarias.
Além dessas, teremos, sob a chancela da Porto Editora, as edições de Poesia Completa, A Viúva (nova edição de Terra do Pecado), Uma Luz Inesperada, O Silêncio da Água e A Viagem do Elefante, com ilustrações de Manuel Estrada.
Já a Companhia das Letras lança Uma Luz Inesperada, ilustrado por Armando Fonseca; O Silêncio da Água, ilustrado por Yolanda Mosquera; edições especiais do Ensaio sobre a Cegueira e de O Evangelho Segundo Jesus Cristo; a reedição de As Palavras de Saramago com organização de F. Gómez Aguilera; e o audiobook de Ensaio sobre a Cegueira.
José Saramago: a escrita infinita, organização de Carlos Nogueira (Tinta da China)
Para celebrar o centenário do escritor, 20 autores escreveram um conjunto de 20 ensaios, publicados pela Tinta da China.
Na apresentação da obra, a editora escreve: “ensaios que dialogam com as palavras de um escritor radicalmente implicado com a vida e a linguagem verbal. Uma linguagem infinita que nos (re)escreve e torna menos limitados”.
Acrescenta ainda que ler Saramago não passa apenas por “mera leitura recreativa, consolo para o tédio da vida ou ostentação de cultura. A literatura e o pensamento de Saramago desassossegam e atraem pela largueza e pela profundidade da visão. Também as leituras que dele fazemos podem ter uma energia indomável, podem ser um modo de ação. É isso que este livro propõe”.
Viagem a Portugal (Porto Editora)
Entre outubro de 1979 e julho de 1980, a editora Círculo de Leitores convidou José Saramago a percorrer o país. Este foi um livro decisivo para o escritor, na medida em que lhe ofereceu condições materiais para se dedicar à escrita a tempo inteiro.
A mais recente edição da Porta Editora coincidiu com o início das comemorações do Centenário de José Saramago e inclui todas as fotografias tiradas ao longo da sua viagem — quase todas inéditas — bem como fotografias de Duarte Belo.
Fonte da capa: CAMÕES I.P. em Varsóvia
Artigo revisto por Lara Alves
AUTORIA
Lembro-me que em pequena tinha o desejo de pisar cada pequeno recanto do mundo. Assim que pude fugi da minha terra natal, onde a única coisa de que ainda tenho saudades é de comer tripa com chocolate enquanto apanho com um vento gelado no rosto e olho por entre o casaco para o mar bravo. Vim para Lisboa com o intuito de estudar algo que me fizesse realmente sentir feliz e realizada. Nos meus tempos livres o mais provável é encontrarem-me pelas ruas de Lisboa a tirar fotografias ou então enfiada numa biblioteca com uma pilha de livros à minha frente.