Opinião

Uma coisa de cada vez

Século XXI, aldeia global, era do progresso tecnológico e da teórica universalização dos meios de comunicação.

No nosso dia-a-dia somos bombardeados com camiões de informação, cargas e descargas consecutivas para dentro da nossa mente. Esfolheamos o jornal pela manhã enquanto tomamos o pequeno almoço. Morreram mais umas tantas pessoas num daqueles países onde tem morrido muita gente. Descemos apressadamente os ingremes degraus até à saída do prédio, cruzamo-nos com a vizinha que balboceia uns tantos fonemas sobre dores nas costas. Apenas ouvimos uma parte. Já no comboio, lembramo-nos de que nem desejámos as melhoras. Ninguém há de ter notado. Entra-nos pelos ouvidos uma conversa sobre o mau comportamento do “filho”, no que para nós é um mero monólogo. É tão estridente que parece que nos revolta. Mas não, não é o nosso filho, nem tão pouco temos filhos. Ah sim, desculpe revisor, está aqui o meu passe, estava perdido a pensar naquelas mortes, naquele país onde tem morrido gente, sabe? Não, não é esse… nesse também tem morrido gente? “Anda tudo doido” – pensamos nós. Não há tempo para pensar o porquê. A meio do dia, decidimos tomar um cafezinho, mas o que realmente nos desperta são dois indivíduos de língua afiada conversando freneticamente sobre uns tantos mortos num certo país – um outro, onde também tem morrido muita gente. “Falta-nos Jesus”, suspira um, e no segundo a seguir já se fala sobre futebol. Não era nossa intenção mas já sabemos os primeiros classificados dos principais campeonatos do mundo. Do outro lado do café fala-se de milhões em atraso num escândalo entre empresas. No televisor do estabelecimento lêem-se milhares. “Milhões” tem outro impacto. Ouvido tem outro impacto. Cafezinho tomado, esfolheamos o jornal desportivo, e encontramos por lá discretamente que um português foi ouro num campeonato do mundo, no canto inferior esquerdo de uma página que possivelmente sobrou por engano, por falta de mais futebol para mencionar. Algures no meio disto tudo recebemos um telefonema de um amigo que nos informa sobre uma empresa de videojogos portuguesa que conseguiu uma patente para produzir para Playstation 4. Primeiro sorriso do dia. Volto a sorrir quando me fala de uma bonita iniciativa, um concerto de caridade organizado pela organização a que pertence. Não fizeram uma fortuna, mas era como se tivessem feito. Nem acredito que estou a sorrir outra vez.

Chegamos e casa e ligamos a televisão no nosso momento de sossego diário. Já são 21 horas mas felizmente podemos recuar a emissão. Não podemos perder nada. Aqui está ele, o telejornal. De novo as mortes, acho que desta vez já fixei o país. À custa destas, falam-se de umas outras tantas que ocorreram há 10 anos atrás, como se não morresse gente todos os dias. De seguida vêm as declarações de um influente político que nos despertam uma sensação de déja vu que poderia ser causado pelo facto de serem todas tão iguais e tão vazias. Não, esperem, vimos esta reportagem ontem. Temos notícia para o resto da semana. Damos por nós a pensar em como ficou a investigação de um crime que gerou imenso alarido durante semanas mas que nunca mais foi abordado. E o ébola, ainda há quem morra disso?

Terminado o serão, é notável o desânimo no nosso rosto por não ver noticiado o concerto de caridade, nem tão pouco o sucesso de uma empresa portuguesa. Se calhar até passou naquele momento em que fomos fazer o xixizinho da praxe.

Não foi desta que o noticiário nos subiu o astral. E ainda temos o Facebook para ver, e responder a uns tantos provincianos que decidiram lançar teorias da conspiração no espaço de comentários.

Deitamo-nos tardiamente a divagar por entre questões e ideias. Lembramo-nos daquele recado dos nossos pais, que só por acaso era para hoje. Amanhã há mais, mais matéria para processar.

Século XXI, aldeia global, sabemos tudo e não sabemos nada.

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