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A circuncisão não é diferente da mutilação genital feminina

É, sem dúvida, uma afirmação atrevida, esta que encabeça a minha crónica semanal. Parece ousado, à primeira vista, tentar igualar o esfaquear violento e inútil de partes do aparelho reprodutor feminino a uma cirurgia feita em condições controladas e estéreis a recém-nascidos masculinos. Aceito o desafio.

Ao invés da mutilação genital feminina, filha única de ideias distorcidas e sujas de moralidade, de pureza e de inferioridade da mulher, a circuncisão continua a ser defendida enquanto ato com valor medicinal. Durante anos foi-nos martelado na cabeça que a circuncisão tem uma suposta panóplia de vantagens médicas: diminui o risco de inflamações no prepúcio e na glande, protege contra o cancro do pénis, diminui o risco de infeções urinárias, etc. A verdade é que, apesar de existirem microscópicas vantagens médicas em casos muito específicos (nomeadamente nos sofredores de fimose), a circuncisão nada mais é do que um rito judeu que sobreviveu, de alguma forma, até aos dias de hoje. É um literal batismo de sangue. O próprio Maimônides, rabi extremamente influente na Idade Média, referiu que a circuncisão nada mais é do que uma forma de diminuição do prazer sexual, e, por conseguinte, um método de regulação moral (para aqueles que considerem a sexualidade humana algo sujo e perverso, naturalmente). Este também recomendava que a operação fosse realizada o mais perto possível do parto, pois assim evitavam-se as “queixas” e as oposições da “vítima”. Exatamente tal cão castrado à nascença.

A mutilação genital feminina é um ato horrível e nojento que deve ser travado de imediato. Os carniceiros praticantes deste ritual devem ser encarcerados e processados em toda a extensão que a lei permita. No entanto, e agora que estabelecemos alguns alicerces argumentativos, devo referir um aspeto que acredito ser raramente falado. A mutilação genital feminina ocorre quase exclusivamente em países de terceiro mundo da África subsariana, onde todas as ideologias são filhas da superstição, da ignorância religiosa e da cultura tribalista. Já a circuncisão ocorre em todo o lado, mas maioritariamente em países ditos desenvolvidos. É de longe uma epidemia global, muito pior do que a mutilação genital feminina nesse aspeto.

Entre 1979 e 2010, de acordo com um estudo de 2013 do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, a taxa média de circuncidados à nascença nos Estados Unidos rondava os 62%. Hoje em dia aproxima-se dos 58,3%. É um declínio extremamente tímido e irregular, já que, depois de um decréscimo razoável na década de 80, o número de recém-nascidos circuncisados subiu no início dos 90. O facilitar do acesso à Internet coincidiu com o início de um decréscimo mais acentuado na prática deste rito. Não me parece que se trate de uma coincidência. O novo Iluminismo do séc. XXI, fruto da infinita biblioteca que se encontra hoje na maioria das casas do mais comum dos mortais, levou à consciencialização dos milenares sobre a inutilidade desta “microcirurgia”.

A circuncisão nada mais é do que mutilação genital feminina socialmente aceitável. Pensando darwinianamente, aquele “bocado de pele” que envolve a cabeça do pénis evoluiu ao longo de milhões de anos. Se lá está é porque serve uma função. A sua existência tem um propósito. Pegar numa faca e rasgar o produto de tão lento e moroso processo num bebé, sem qualquer motivo à exceção dos mesmos ideais tradicionalistas que justificam o apedrejar de mulheres adúlteras em público, é criminoso. Ou deveria ser, a julgar pelas mortes e infeções graves que esta simples operação já causou.

Deixo-vos com um vídeo de um debate entre Christopher Hitchens, antiteísta declarado, e o Rabi Harold Kushner sobre a temática da circuncisão.

Este artigo é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico

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