Opinião

Escavar à procura de ouro

João Carrilho

Há certos debates que são naturalmente dados à violência verbal. Quando o assunto é quente a boca não se contém. Estou muito longe de ser excepção a esta regra. Exalto-me com excessiva facilidade, mesmo quando me apercebo, mais cedo ou mais tarde, que tal funcionou em meu detrimento. Sim, porque quem diz que não quer influenciar o outro numa conversa está a mentir. Só quem desempenha o papel de advogado do diabo pode afirmar que não quer convencer a outra pessoa da veracidade daquilo que está a dizer.

Os temas sociais são os mais dados à violência verbal. Reitero que, para bem ou para mal, isto faz parte da essência de uma boa conversa. Quanto maior a paixão pelo tema maior será o grau de fervor. Porém, um mau debate é vítima de tácticas mais frias, mais calculistas: a propaganda ou o uso de informação persuasivamente mentirosa. Por vezes, o utilizador nem sabe que aquilo que está a dizer nada mais é do que um estereótipo imaginário. Desconhecimento da lei não é desculpa, no entanto. Centenas de temáticas encaixam bem aqui. A sexualidade, por exemplo, foi vítima (e continua a ser, mas felizmente em grau menor) da castração propagandista da igreja durante séculos, ou quiçá milénios. Da mais estúpida – a masturbação causa cegueira – à mais “sofisticada” – a utilização de preservativos é um detrimento no combate ao HIV/SIDA. Para minha tristeza, até as ideologias mais à esquerda sofrem de propaganda barata, mesmo que por vezes seja um pouco mais sub-reptícia. Os vegetarianos insistem no facto de a carne ser categoricamente prejudicial para a saúde e que, em certas circunstâncias, inclusive, resquícios desta podem ficar a apodrecer nos intestinos durante anos. Bom, será fácil derrotar este argumento com uma única palavra: evolução. Durante 100.000 anos (a idade estimada da existência humana), nós sobrevivemos com uma dieta omnívora que, pela própria natureza do nome, inclui necessariamente carne. Se tais hábitos alimentares consistissem uma barreira impeditiva para a continuidade da nossa existência, a mãe natureza teria esmagado todos esses carnívoros pelintras; hoje a nossa dieta desde nascença seria, portanto, exclusivamente vegetariana. A verdade é que os humanos, enquanto espécie, sempre comeram os restos mortais de outros seres. Isto é demonstrável tanto pela nossa morfologia – a dentição feita para triturar e moer – como pela nossa genética – os indivíduos com uma dieta vegetariana necessitam de tomar suplementos de Vitamina B-12, já que esta encontra-se exclusivamente em proteína animal.

Claro que em excesso (ou em defeito) tudo é nocivo. As carnes vermelhas são, de facto, más para o colesterol e para a pressão arterial. Tal não representa argumento contra a omnivoridade natural, até porque a alimentação moderna é muito distinta da dos nossos antepassados.

Há uma distinção importantíssima que merece ser feita. O facto de nós sermos morfologicamente omnívoros não quer dizer que tenhamos que ser comportamentalmente omnívoros. Poder fazer é diferente de fazer. E aí, sim, reside o debate. Uma temática absolutamente deliciosa e multifacetada, até. Consciência animal, sofrimento, dor, darwinismo, algesia, neurologia e até filosofia.

Estes problemas desincentivam as conversas importantes do nosso tempo. Ninguém tem paciência para descascar meia dúzia de camadas de ideologia partidária ou para extrair vinte mentiras cancerígenas, e aquilo que era para ser debatido morre. Se querem defender apaixonadamente uma ideia, e prometo-vos que é das melhores sensações que podem ter na vida, façam o vosso trabalho de casa. Não desonrem os antecessores das vossas teorias ao recorrer a tais golpes intelectualmente baixos. A propaganda é no fim de contas uma bandeira branca – quem não tem argumentos, quem sabe que está errado e quem só usa coadores para tentar reter água: inventa.

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